Jornal Maio

Estudei em escolas que não tinham livros. A primeira, entre todas a mais precária, não tinha nome, não havia nada nas paredes que indicasse ser uma escola. Havia apenas uma professora e crianças. Isso parecia bastar. Cheguei lá e disse

- Eu quero estudar.
A professora, Dona Isabel, apontou com o beiço inferior o caixote mais próximo, indicando que eu podia sentar.
- Como é seu nome?
- José, Zé.
- José do quê?
- Da Silva.
- Como é o nome do seu pai?
- Joaquim. Joaquim do quê?
- Num sei não. O povo chama ele de Seu Quinzinho.
- E sua mãe?
- Maria. Maria das Dores.
- De onde veio esse Silva no seu nome?
- Onde eu moro, todo mundo que sabe assinar o nome é Silva. Pensei que eu também era.
- Você tem registro de nascimento?
- Num sei não.
- Então, quando você voltar pra casa, pergunte aos seus pais. Diga que é o papel que tem o seu nome, o dia que você nasceu, o nome do seu pai e da sua mãe. Cada família tem um sobrenome que identifica todas as pessoas nascidas do mesmo pai e da mesma mãe. Às vezes, se repete, como nos Silva que você conhece, mas isso não significa que a humanidade toda é Silva.
- Pensei que era igual. Todo mundo.
- Quando você estudar matemática vai perceber o que é igual. Não se assuste, o igual é fácil. Difícil é entender e aceitar o desigual.

Fiquei de orelha em pé. Não entendi, mas sabia que era ruim. O jeito como a professora falava me lembrava ave de mau agouro. Será que era como ter dor de barriga? Frieira? Sarna? Dor de dente? Tudo isso eu conhecia, já sei que aguento. Só não aguento passar fome. Será que o desigual tem a ver com a fome? A barriga parecia acompanhar meus pensamentos, sentia as tripas a me avisarem que se eu me atrasasse para o almoço, só ia ter comida à boquinha da noite. A regra era estar em casa na hora de comer. Eu não havia dito que ia à escola. Eu nem sabia que ia. Há dias, passava em frente, olhava pra dentro, tinha vergonha de entrar. Tomei coragem, entrei, agora tenho que ficar até o fim. A professora disse que só acaba no pingo do meio-dia, a mesma hora que sai o feijão na minha casa. 

Vou ficar com fome e ainda corro o risco de levar uma surra do meu pai. Até eu poder explicar que estava na escola, o chicote já cumpriu a sua função. Só depois, ele vai sair de casa, pisando duro, falando entre os dentes, até bater à porta de Dona Isabel, para saber se eu falei a verdade. Vai voltar mais calmo. Devia, ao menos, me pedir desculpas. Só na minha cabeça essa parvoíce. Ele jamais admite estar errado. Na sua pedagogia autoritária, os filhos são semelhantes ao seu carro de bois, cujos ajustes os faz a ferro e fogo. Aquele abraço do ferro em volta da roda de madeira só é possível graças ao calor, que aquece as suas moléculas e o alarga; os bois são domesticados, encangados e obrigados a marcharem lado a lado, no mesmo compasso. Cabe ao carreiro, meu pai, ter domínio sobre o processo de fabricação do carro, tanger os bois, se preciso, usar o chicote ou a vara de ferrão. Ele não saberia explicar causa e efeito, mas sabe que funciona. É o método que conhece. Aprendeu com seu pai. Por que não aplicar o mesmo aos seus filhos? Parece-lhe justo.

Essa ordem supõe os mais fortes sobre os mais fracos. De onde vem essa força? Entre os homens, embora a força física às vezes prevaleça, em geral, a relação de poder tem outra natureza. Ter mais força que meu pai não me autoriza a revidar quando ele me bate. Tampouco posso me rebelar contra as autoridades constituídas, quando me sinto injustiçado. O negro, por exemplo, por maior que seja a sua força, quando é agredido pelo policial apenas se encolhe, tenta se proteger do cassetete com as mãos; a mulher violentada, quando pode, grita, esperneia, mas não é invulgar a sociedade desculpar o agressor; o homossexual insultado foge, se esconde, muitas vezes é ridicularizado. E quando eu paro e estico o olho para o prato de quem come na esplanada, o garçom me pega pelo braço e sem olhar para minha cara de fome, diz: “Fora daqui!” Acho que era disso que a professora falava.

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Maria Augusta Tavares​

Maria Augusta Tavares​

Investigadora do trabalho