Canhões ou manteiga?
O presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), Armindo Monteiro, afirmou que, preparando-se os países da NATO para aumentar a despesa em matéria de defesa até 5% dos PIBs nacionais, Portugal devia converter algumas das suas fábricas à produção de armas. “Por que não dedicar a capacidade [do sector automóvel] à produção militar?”, questionou Monteiro.
Michael Roberts
Economista
Recentemente, o presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), Armindo Monteiro, afirmou que, preparando-se os países da NATO para aumentar a despesa em matéria de defesa até 5% dos PIBs nacionais, Portugal devia converter algumas das suas fábricas à produção de armas. “Temos de reativar algumas indústrias de defesa que ainda temos, mas sobretudo aproveitar algumas indústrias que estão plenamente operacionais e convertê-las. Um exemplo é o sector automóvel, que está a sofrer uma recessão; por que não dedicar essa capacidade à produção militar?”, questionou Monteiro, acrescentando ser relativamente simples transformar a fabricação de automóveis em fabrico de armas e que tal estava já a acontecer.
Mas será fabricar armas para a guerra a melhor maneira de Portugal e outros países europeus aumentarem a produção nacional e o emprego? As grandes potências parecem determinadas a transformar o mundo num imenso quartel. A despesa global com armamento ascendeu a 2,7 biliões de dólares no ano passado e está para acelerar. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, propôs um plano de rearmamento da Europa (Rearm Europe), que visa mobilizar até 800 mil milhões de euros para financiar um incremento maciço da despesa com defesa. “Estamos numa era de rearmamento, e a Europa está pronta para aumentar maciçamente a despesa com a defesa.” Enquanto isso, a ameaça existencial representada pela emergência climática está a chegar a uma etapa crítica, devendo a comunidade internacional andar antes a mobilizar recursos dessa ordem de grandeza para a criação de uma economia pós-carbono.
“A questão de fundo é saber se estamos dispostos a aceitar que a corrida global aos armamentos é inevitável, e as alterações climáticas irreversíveis.”
Os governantes costumam argumentar que o aumento da despesa militar criará emprego e puxará pela economia. Então, mas para criar emprego, somos a favor de fabricar armas que servem para matar gente? O economista ortodoxo Maynard Keynes disse uma vez que, para puxar pela economia, “os governos deviam pagar gente para cavar buracos no chão e depois voltar a enchê-los”. O leitor ficará tentado a responder: “Mas que estupidez, não era melhor pagar para construir estradas e escolas?” Keynes responderia: “Está bem, paguem-lhes para construir escolas. A questão, aqui, é que não interessa o que façam, desde que o Estado crie emprego.”
Só que Keynes estava enganado. Interessa, sim. Se o tipo de empregos não interessasse, por que não aumentar drasticamente a produção de tabaco e promover o vício, assim criando emprego? A maior parte das pessoas opor-se-lhe-ia, por isso prejudicar diretamente a saúde. Ora, fabricar armas (convencionais e não convencionais) é extremamente prejudicial.
Não faltam produtos e serviços socialmente úteis que poderiam proporcionar emprego e salário aos trabalhadores. Infelizmente, muitos dirigentes sindicais apoiam as indústrias armamentistas porque muitos filiados seus nelas conseguem empregos seguros e bem remunerados, em que podem praticar orgulhosamente as suas competências especializadas. No entanto, diversificar a produção em detrimento do armamento poderia ser tão fácil quanto Monteiro pensa que é passar do fabrico de automóveis para o fabrico de tanques e bombas. Mais: teria maior potencial de criação de emprego. A produção de armas é particularmente intensiva em capital, gerando, por isso, menos empregos, em termos relativos, do que a produção civil. Um estudo norte-americano concluiu que, se o governo dos EUA investisse mil milhões de dólares em sectores civis alternativamente à produção militar, geraria até 140% mais emprego. Os investimentos em energia limpa, cuidados de saúde e educação criam também número muito maior de empregos em todas as faixas salariais, incluindo empregos de rendimento médio e alto.
Portugal tem um pequeno sector de produção de armamento, originalmente controlado pelo Estado para apoiar as forças armadas, particularmente durante as guerras coloniais do pós-1945. Essa estrutura acabou quando se deu a Revolução dos Cravos, em 1974-75. Atualmente, a indústria do armamento gera apenas 73 milhões de dólares por ano, correspondentes principalmente a sete grandes empresas privadas e cerca de trezentas micro, pequenas e médias empresas, que empregam apenas 32 mil pessoas, abarcando os sectores da aeronáutica, construção e reparação naval, têxtil, automação e robótica, metalurgia e desenvolvimento de software.
Em vez de apelar à expansão deste sector para satisfazer os objetivos bélicos da NATO e puxar pelos lucros das empresas privadas de armamento, como o presidente da federação empresarial portuguesa gostava, o governo português podia assumir o controlo pleno do sector e usar os recursos e as competências da força de trabalho para a produção civil, fosse de energias renováveis ou de desenvolvimento de inteligência artificial. São sectores que requerem competências idênticas e oferecem salários tão bons como a indústria de armamento. Seriam empregos melhores para os trabalhadores e para todos nós: postos de trabalho em indústrias que muito carecem de expansão e que não contribuem para um mundo mais perigoso, mas para um mundo mais seguro.
Nem sequer é certo que os trabalhadores atualmente empregados na produção de armamento se opusessem à mudança. Um estudo que perguntou aos trabalhadores da indústria armamentista se eles se opunham à diversificação indicou que os trabalhadores se dividiam; mas a mensagem forte que ficou foi que, para qualquer mudança, era preciso consultá-los. Eles detinham conhecimento indispensável em matéria do que fosse necessário fazer para tal diversificação.
Assim, propostas de redução da produção de armamento não podem vir de cima para baixo. Têm de dar voz e um papel aos sindicalistas, ouvir as ideias dos trabalhadores a respeito de planos alternativos praticáveis. O governo deveria criar uma agência para a diversificação que concebesse um programa de transição que, na reafectação a novos empregos, preservasse qualificações, empregos, salários e pensões.
Porém, a questão de fundo ainda é saber se estamos dispostos a aceitar que a corrida global aos armamentos é inevitável, e as alterações climáticas irreversíveis. Ou se, em alternativa, erguemos uma nova economia, assente nas orgulhosas tradições do movimento operário, de internacionalismo e luta pelo desarmamento, uma economia em que as qualificações dos trabalhadores possam servir para produções socialmente úteis, não para fazer armas de destruição maciça.