Jornal Maio

Empreendedorismo
a sério

Escritas nos mais diferentes idiomas estavam ali todas as curtas frases que muitos homens gostam de ouvir, todas as mentiras que os fazem poderosos, todas as obscenidades que potenciam a força motora da pulsão sexual.

Sou uma passageira silenciosa. Durmo, vejo filmes, levanto-me delicadamente, caminho com leveza. Tenho muito cuidado com os meus movimentos, para não incomodar as pessoas, sobretudo as que estão ao meu lado. Mas isso não significa que faça questão absoluta de viajar em silêncio. 

Discretamente, costumo prestar atenção e levantar hipóteses sobre o passageiro ao lado. Tento adivinhar se vale a pena puxar conversa. Nos últimos anos, em que o filtro ideológico se tornou determinante, o critério de avaliação também passa por aí. Não me agrada conversar com quem se coloca no mundo com uma visão completamente oposta à minha. 

Era um voo internacional. Teríamos longas horas juntas.

Minha companheira de viagem era jovem, bonita, bem vestida. Podia ser estudante de Direito. Sim, ela vestia blazer e saia justa, calçava saltos altos, meias finas cor da pele, ao estilo das candidatas a juíza. Talvez fosse ao encontro daquele professor que a aceitou para uma pós-graduação. Não tinha nos olhos o brilho de quem vai ao encontro do amor. Não, não havia um namorado à sua espera. Demonstrava força, determinação, certeza duma escolha que eu não sabia qual, mas não era o amor romântico que a movia. Podia ser uma viagem de férias. Supus que iria a Paris, onde amigos a esperavam. Desejei falar com ela. Mas era tão jovem! Não devia ter o menor interesse em conversar com alguém a quem chamaria de senhora. Até que, finalmente, veio o aceno. 

A jovem não era nada do que eu havia pensado. Nascida numa família pobre, era a primeira a ultrapassar o ensino médio. Como dizia ela, pobre não faz faculdade, tem dificuldade. Não falava com fluência nenhuma língua, nem mesmo a sua. Em outro figurino, num outro ambiente, a falar de coisas triviais, talvez só a beleza física lhe fosse ressaltada. Mas havia nela algo de especial e eu estava curiosa. Não fiz perguntas diretas. Talvez ela estivesse mesmo desejando falar de si. Há coisas sobre as quais se pode falar mais francamente com um estranho. 

Depois de me falar sobre o motivo de sua viagem, ela tirou da bolsa, cuidadosamente, um caderno de capa dura, semelhante a uma agenda, e perguntou se eu queria saber o que lá estava escrito. Embora eu não estivesse com muita disposição para ler o que me parecia ser a mesma história que ela já havia resumido, por educação disse que sim. Que surpresa! Ao abrir aquele caderno, descobri que tinha nas minhas mãos um precioso instrumento de trabalho. Devo ter transmitido confiança. Era uma das poucas vezes em que eu identificava uma vantagem de ser tratada como senhora. Tivesse eu quarenta anos menos, jamais teria tido acesso ao conteúdo daquele caderno. No mundo dos negócios não se partilham boas ideias com possíveis concorrentes. Mas, decididamente, eu não era uma ameaça à minha jovem companheira de viagem. Já não tinha idade para exercer a profissão que ela abraçara com raro empenho.

Pode-se dizer que ela vendia sonhos. Vendia mentiras picantes, cujos efeitos foram descobertos por mulheres atentas e sábias há séculos. Sonhos que aproximam homem e mulher, muitas vezes até os conduzem ao casamento. Ela redescobriu, no entanto, que esse conhecimento podia ser vendido por ela em pequenas doses, em diferentes lugares e que se o fizesse com a qualidade desejada, venderia o mesmo produto centenas, milhares de vezes, trocando apenas a embalagem.

Escritas nos mais diferentes idiomas estavam ali todas as curtas frases que muitos homens gostam de ouvir, todas as mentiras que os fazem poderosos, todas as obscenidades que potenciam a força motora da pulsão sexual. Ela precisou apenas de aplicar uma lição atualmente muito repetida: os limites devem ser transformados em oportunidades. Apesar de não ter fluência em nenhum idioma, fez uma excelente pesquisa na área. O tema não lhe permitia uma chamada pública – “Precisa-se de tradutor em diferentes idiomas para frases que possibilitem uma atividade sexual satisfatória” –, mas isso não a intimidou. Leu bastante, treinou diante do espelho, a vestir sensuais peças íntimas e exibir caras, bocas e sussurros, para dar veracidade às desejáveis mentiras. Aliás, ela me disse que a sua má pronúncia costuma aguçar o fetiche dos parceiros. Pois bem, deem-lhe o nome que quiserem, eu queria saber como ela mesma se identificava profissionalmente. Não titubeou: sou uma empreendedora. Sim, uma empreendedora a sério. Dada a prosperidade do negócio e a sua internacionalidade, eu diria que é uma bem sucedida CEO.

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Maria Augusta Tavares​

Maria Augusta Tavares​

Investigadora do trabalho