Semeador de Palavras – entrevistas a José Afonso
Guadalupe Portelinha
Vice-presidente da AJA. A autora escreve segundo a norma anterior ao Acordo Ortográfico adoptado em 2009.
O livro Semeador de Palavras – entrevistas a José Afonso, edição da AJA – Associação José Afonso, organizado por Ana Ribeiro, Guadalupe Portelinha e José Rodrigues é um libelo contra o esquecimento, uma luta pela memória, e tem como propósito informar e esclarecer sobre o pensamento de José Afonso, através das suas palavras, que tocam os mais variados temas, enriquecendo o seu legado e a nossa herança cultural.
José Afonso tem-nos seduzido e emocionado com a sua arte maior, legando-nos uma obra de enorme valor artístico e humano. Mas sabemos que por detrás da obra está o homem com uma biografia e um pensamento, independente das histórias que narra nas canções, mas seguramente com muitos pontos em comum. Nestas entrevistas (cerca de 100) revela-se em toda a sua grandeza e simplicidade e ficamos com uma melhor compreensão da obra criada, que necessariamente o envolveu e da qual não podia dissociar-se, mas também um melhor entendimento desse tempo em que foi um protagonista activo.
José Afonso foi um semeador de palavras com causas e luta dentro e tentou sempre espalhar as sementes para que criassem raízes. Como alguém disse, “sementes de raiva e amor”. Canta numa das suas canções: “semear a palavra, para romper e crescer como baleia/ Plantei a semente da palavra/ Antes da cheia matar o meu gado/ Ensinei ao meu filho a lavra e a colheita num terreno ao lado/ A palavra rompeu/ Cresceu como a baleia/(…)”. E as suas palavras têm sido ouvidas, colhidas, guardadas como tesouros ou cantadas como hinos e voltadas a semear não só em Portugal como em várias partes do mundo.
Com esta pesquisa, recolha e publicação de entrevistas e declarações à Imprensa, nacional e estrangeira, que José Afonso foi dando ao longo da vida, consideramos que estamos a prestar um serviço público, dando a conhecer melhor o homem por detrás das canções. E assim partimos ao encontro desse homem excepcional que marcou e contribuiu para a cultura deste país com a sua arte, baseada num profundo humanismo e enorme talento poético e musical. Pretendemos desvendar e confirmar o seu percurso, apresentar este ser humano na primeira pessoa e, de viva voz, sem interpretações ou suposições, revelar o seu pensamento, opções, concepção e visão do país e do mundo – que ele foi transmitindo pelas canções e poemas que eram o palco primordial onde exibia o seu teatro de vida, mas agora colocados de outra forma, falados directamente para os entrevistadores – para nós! Na verdade, não encontramos aqui as palavras transformadas em poemas e canções que tanto nos encantam e emocionam, mas, e não menos emocionante, confrontamo-nos com o ser em toda a sua humanidade, na simplicidade do dia-a-dia, com o seu sentido de humor, alguma alegria e muito da sua mágoa, revolta, desilusão. Esta obra reforça esse olhar de homem comprometido com o seu tempo, envolvido em lutas com causas e ideais dentro, que tem de confrontar-se com aspectos práticos de sobrevivência. É chocante, por exemplo, ler que houve um tempo em que passou fome. É muito confrangedor, pungente mesmo, porque sabemos o desfecho, ouvir a sua voz falar da esperança de recuperação da doença fatal, e por momentos quase vibramos com o seu entusiasmo pela cura. É com muita incredulidade que o ouvimos dizer que o desporto lhe deu mais alegrias do que as canções alguma vez lhe proporcionaram ou que teve experiências muito mais bonitas como professor do que como cantor. E mais surpreendente ainda, quando afirma que não gosta de cantar. Neste livro/documento há, pois, situações, afirmações inusitadas que nos criam perplexidade, apreensão e emoção. Engane-se, por exemplo, quem afirme que José Afonso gostava mais deste ou daquele disco. Ele vai mudando de opinião conforme o tempo em que foi interrogado, pressinto que conforme as mensagens que quer que os discos transmitam naquele momento. Muitas vezes nas suas falas sentimos o arauto, o aviso, a consciência quanto ao que pode acontecer em sentido contrário ao seu pensamento, neste país que viveu uma esperança e um júbilo sem paralelo. Soam-nos premonitórias certas palavras, neste tempo ácido, onde focos infecciosos de neofascismos estão a impor-se no mundo. Há vários exemplos que nos desafiam, pelo que a leitura deste Semeador de Palavras nunca se torna monótona, antes carrega constantes novidades. A certa altura sentimo-nos dentro do texto, também nós com a cabeça cheia de perguntas, perante a sua voz viva, mensageira de utopia.
Nesta obra lê-se a história de um homem grande, dada a conhecer graças às pessoas que o entrevistaram. Para elas o nosso agradecimento.