Nós, os que trabalhamos na ferrovia, também queremos falar hoje
Ora o acordo não podia ser cumprido porque o governo estava em gestão, ora o governo já podia cumprir o acordo, mas afinal só em julho, ora passou julho e em agosto seria difícil, ora em setembro recebemos silêncio eterno.
Num destes dias, ouvimos uma senhora a ser entrevistada na televisão. Ela explicava que ficou impossibilitada de ir ao médico – uma consulta muito urgente – porque havia greve dos comboios.
Desligámos a televisão e ficámos a olhar uns para os outros, à volta daquela mesa, onde discutíamos a nossa vida toda. Era também esse o caso de uma das mães de um colega: por causa da greve dos comboios, faltara a um tratamento importante. O seu filho, ali à mesa, era um dos responsáveis pela organização da greve. A sua irmã, pela mesma razão, faltara a uma entrevista de emprego.
Uns meses antes, tínhamos tentado uma forma menos danosa para todos. A greve afetava também as nossas vidas privadas. Os nossos pais, os nossos filhos também não podiam fazer as suas vidas normais. Eram prejudicados diretamente pelas nossas ações. Valeria tudo isto a pena?
Um colega interrompeu aquele silêncio absoluto e disse: “Nós quisemos fazer de outra maneira.”
Pois quisemos. Reunimos com o governo, faz meses. Pedimos um aumento salarial diminuto, de cerca de cem euros. Pedimos que tivessem em consideração o quanto custa, hoje, ir ao supermercado, viver numa casa, sustentar uma família. Exigimos uns míseros cem euros. Cem euros! Com eles, alguma dignidade pela importância do serviço que prestamos. Cem euros, que ao menos nos compensem por vinte anos de atraso nas atualizações salariais. Cem euros que não chegarão sequer perto dessa compensação.
Olho novamente à minha volta, para esta mesa. Estão aqui os técnicos da manutenção da ferrovia, estão aqui alguns revisores, estão aqui os maquinistas. Não foram trabalhar hoje, estão de greve, não estão contentes, mas estão aqui. Foram todos enganados, eles e eu. Perderam horas de vida em negociações, promessas vãs de um aumento salarial para todos os trabalhadores da ferrovia. Acordos firmados. Ora o acordo não podia ser cumprido porque o governo estava em gestão, ora o governo já podia cumprir o acordo, mas afinal só em julho, ora passou julho e em agosto seria difícil, ora em setembro recebemos silêncio eterno. Nenhuma resposta. Nós não queremos que aquela senhora não possa ir ao médico, mas há mínimos na decência do que é suportável.
Não queremos fazer greve. Não queremos deixar de receber o nosso salário no dia em que fazemos greve e ficamos a olhar uns para os outros nesta mesa, quando podíamos estar a conduzir as nossas irmãs a entrevistas de emprego. Não queremos fazer greve, ponto final. Nós queremos trabalhar, com decência. E se fazemos greve, é porque não nos sobrou mais nenhuma alternativa. Todos saímos mal de uma greve. Nós também.
“Valerá tudo isto a pena?”, eis o que penso sentado à mesa. Mas olho para o nosso mais jovem colega e vejo-lhe o futuro sem rumo: leva 1050 euros para casa e a sua melhor perspetiva, em topo de carreira, daqui a 27 anos, é a de ganhar 1280. Olho para um dos técnicos e vejo as marcas de levar esta vida, trabalhar à chuva, ao frio, um trabalho esforçado, fisicamente exigente, de uma grande responsabilidade – a de quem garante que todos chegam ao seu destino e não pensam mais sobre o que os transportou até ali. Já vimos que nem sempre é assim. Muitos deles a trabalhar horas extras extenuantes, às vezes das 8 às 22 horas, por falta de pessoal contratado para prestar os serviços que são indispensáveis para servir as pessoas, apesar das vagas. E depois olho para o grupo dos revisores, porventura os que mais colhem a indignação do público. Muitos já emigraram, fartaram-se de tudo isto. Outros ainda acreditam, ou esperam acreditar. Certamente as pessoas não se importariam que nenhum revisor aparecesse para trabalhar. Rio-me sozinho. Depois lembro-me que sem revisor não há comboio algum que inicie viagem em Portugal. Já estou a ver as gordas do diário de amanhã: supressão de comboios por falta de revisores – a população ficou contente, depois percebeu.
Nós não queremos pedir desculpa pela greve. Queremos explicar o que nos trouxe até aqui. A nossa greve não é uma tentativa de prejudicar as vossas vidas. É a nossa tentativa mais desesperada de melhorar as nossas condições de trabalho, das quais os passageiros padecem também nas suas próprias vidas, e a segurança de todos. Isto não é sobre nós, os que estão sentados a esta mesa. Isto é sobre os que todas as manhãs se levantam para trabalhar. Portanto, é sobre nós também.
Bruno Oliveira e Luís Pinto
STMEFE - Sindicato dos Trabalhadores do Metro e Ferroviários