Carlos Fernández Liria parte II
A segunda parte desta conversa a três foca-se na ofensiva contra a escola pública, degradando a profissão de professor e a sua autonomia e o valor da ciência.
Entrevista de Raquel Varela e Roberto Leher
Roberto Leher (RL): O programa de extrema-direita na Florida e no Texas defende que a escola deve ser uma instituição subordinada à família. O programa de Trump defende que na eleição dos diretores das escolas votam apenas as famílias, sem a participação de professores e estudantes, e que os pais podem contratar e demitir professores livremente. Entretanto, nos distritos destes estados, “as famílias” exigiram a retirada de 5600 títulos de livros entre 2022 e 2023, entre os quais autores como Tolstoi, Hemingway, García Márquez… Como podemos ver, o enfraquecimento do lugar dos docentes, supostamente autoritários, aproxima o pensamento “progressista” das propostas da extrema-direita nos Estados Unidos.
Carlos Fernández Liria (CFL): É todo o contrário do que deveriam ser as escolas públicas, ou seja, um sistema, uma instituição para libertar o cidadão do totalitarismo e da doutrinação ideológica da família. A escola pública tem de estar a salvo da ditadura familiar, porque foi por isso que foi inventada. Se não, as seitas religiosas, ou outras a que os pais pertençam, são donas dos filhos até completarem 18 anos. Isso é simplesmente destruir o espírito do que significa essa instituição pública a que chamamos escola. E o fundamental é a liberdade académica. É fundamental que os professores possam realmente ter liberdade académica, o que significa que não dependem de nenhuma seita privada, de qualquer empresa privada, ou de qualquer controlo governamental, de qualquer controlo ideológico governamental.
Raquel Varela (RV): Muitos intelectuais já não querem ser professores. Por outro lado, se o professor é chato, se ele é um pouco monocórdico, distraído, comete algum erro, ele já é um mau professor. A aula tem de ser uma performance. Esta é a primeira questão. As crianças estão sem atenção – com o uso dos telemóveis que os fazem flexíveis e (supostamente) multifocais. A segunda é que o professor fica numa posição aviltante. As crianças não leem. É como uma destruição da capacidade produtiva, uma guerra, que destrói o trabalho cultural educativo. Há muita gente desmotivada com a profissão, porque este processo de expropriação do conhecimento das crianças também significa expropriação do professor. Ensinar é uma relação, e as crianças e jovens foram convencidos a não aprender.
CFL: Conheço muitos professores desiludidos, a abandonar a profissão, cada vez mais deprimidos, mesmo em tratamento para a depressão, a tomar comprimidos para poderem aguentar até deixarem de aguentar e mudarem de profissão. O seu trabalho está longe de ser respeitado. Diz-se constantemente que os conteúdos são o menos importante, porque já estão na Internet, porque isso deixa o professor praticamente sem qualquer função, porque já podem procurá-lo na Internet. E então o professor torna-se apenas uma espécie de treinador que também tem de fazer uma performance. Em princípio, um professor de Matemática deve estar preparado para ensinar matemática. Ou o de línguas, não pode fazer um número circense enquanto os alunos aprendem a língua com um youtuber no computador.
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Nunca os trabalhadores precisaram tanto de uma voz independente.
RV: Assim, uma escola que cada vez fala mais de inclusão exclui cada vez mais.
CFL: A escola funcionava relativamente bem também como elevador social, como equalizador das diferenças sociais, onde os ricos e os pobres são tratados em pé de igualdade. Por outro lado, quanto mais desacreditada for a escola pública, maior a distância do ensino privado. Assim, cada elite almeja ter a sua própria escola.
“A escola pública tem de estar a salvo da ditadura familiar, porque foi por isso que foi inventada. Se não, as seitas religiosas, ou outras a que os pais pertençam, são donas dos filhos até completarem 18 anos.”
RV: E isso segrega. Se a escola é no centro da cidade, tem um programa, mas se for numa periferia, tem outro. Chamam-lhe adaptação curricular. As crianças têm disciplinas descafeinadas.
RL: Gramsci dizia que quanto mais géneros de escolas houver, menos democrática é uma sociedade. Uma sociedade que tem escolas para crianças pobres, crianças de origem popular, escolas distintas para áreas urbanas e rurais, não é uma escola autenticamente democrática.
CFL: Gramsci estava certo. Uma vez propus, a brincar, porque sabia que era inatingível, que qualquer pessoa com um cargo público, do presidente do Governo ao último vereador ou ao filho do ministro, tinha de levar os seus filhos para a escola pública definida por sorteio num raio razoável. Porque, claro, se o que acontece é que as classes sociais mais pauperizadas em que os alunos que não têm espaço para estudar, não podem ser ajudados pelos pais porque os pais estão a trabalhar, se todo esse contingente humano vai para a escola pública, enquanto as classes médias e as classes altas vão para a escola subsidiada e privada, isso é pura segregação e puro racismo. No final acaba por ser um racismo social em que os pobres vivem uma realidade no ensino completamente diferente da das classes ricas. Vejamos o caso da Finlândia. Por que funciona tão bem? Há muito poucas escolas privadas. Cerca de 90% da população frequenta a escola pública.
RV: A minha hipótese é um pouco que a Finlândia tem fronteira com a Rússia, e tem uma população muito pequena, precisam de quadros bem formados para sobreviver como país. Em Madrid ou Lisboa, pode-se enviar milhares para as escolas degradadas, porque existem escolas privadas diferenciadas para formar líderes.
CFL: Penso que terão muito dinheiro para ensinar, porque podem pagar certos luxos a que também deveríamos poder aspirar. Mas, claro, para começar, não segregar entre escolas privadas e públicas.
RV: Há duas ideias generalizadas, uma é de que a escola é para ajudar a procurar emprego – formar para o mercado de trabalho –, e a segunda é que nada pode ser democrático e de qualidade se for massificado. Raymond Williams defendia o contrário. Se não há escala, milhões, não há qualidade. Só há génios da filosofia na Alemanha porque se massificou a filosofia nesse país. No limite, nem o ensino privado será de qualidade se não houver qualidade no público, porque não há escala.
CFL: Concordo plenamente. A saúde pública funcionou muito melhor do que a saúde privada e as escolas públicas, muito melhor do que as escolas privadas. Na verdade, quando eu era professor no ensino médio, o público era muito melhor. A universidade pública tem muito mais prestígio do que a universidade privada.
RL: É muito interessante que nas escolas das revoluções, como na Comuna de Paris, os trabalhadores praticavam uma escola do conhecimento em que as crianças, por exemplo, não devem apenas aprender o que é uma produção, mas eles próprios produzir. E, por isso, no processo revolucionário havia oficinas com Manet “no processo de produção” de arte para crianças da classe trabalhadora, e também oficinas onde as crianças tiveram de aprender os fundamentos técnicos e científicos da produção do processo de trabalho para que os filhos da classe trabalhadora pudessem ser os dirigentes e não os dirigidos no processo de produção.
Há outro ponto muito interessante na tua reflexão sobre a objetividade. Objetividade não significa neutralidade ética. O racismo é inseparável da formação do capitalismo e do imperialismo, e isto permite-nos compreender melhor os fundamentos do racismo no mundo de hoje. No Brasil houve o movimento “escola sem partido” e nos EUA perseguem professores marxistas acusados de falta de objetividade e de serem doutrinários.
A crítica ao racismo é científica. A biologia mostra-nos muito vigorosamente que não existem raças no sentido biológico. A raça é uma construção política. Não há raças biológicas na espécie humana, há um polimorfismo. E há também uma educação histórica, filosófica e ética sobre o significado do racismo. Portanto, o racismo compõe a agenda da ciência, da ética, da filosofia, onde podemos desenvolver conhecimentos que façam uma crítica radical aos fundamentos do racismo. É necessário mencionar que muito recentemente, até ao século XIX, e depois, com o nazismo, houve uma construção de um “racismo” baseado em “evidências científicas”, que supostamente era a ciência. A população latina e negra seria menos inteligente e a população de origem europeia era mais inteligente. Bem, foi a ciência que criticou esses fundamentos, foi a produção vigorosa, ética e objetiva da ciência que o fez. Trata-se de lutar pela boa ciência e não pela má ciência com fraudes científicas, e creio que este é um ponto fundamental para a esquerda. Nós temos um interesse histórico como classe em desenvolver conhecimento rigoroso na escola porque a ciência rigorosa tem um compromisso ético com a aproximação à verdade. Como dizia Gramsci, a verdade é revolucionária.
“… quanto mais géneros de escolas houver, menos democrática é uma sociedade. Uma sociedade que tem escolas para crianças pobres, crianças de origem popular, escolas distintas para áreas urbanas e rurais, não é uma escola autenticamente democrática.”
CFL: Concordo. Por outras palavras, tenho dito que a escola não deve educar num catecismo moral de qualquer tipo, nem de esquerda nem de direita. É verdade, a ciência tem efeitos morais e efeitos políticos. O rigor científico tem efeitos morais e políticos na formação dos cidadãos? Sim, claro. Isto para começar pelo que disse, porque, naturalmente, para ser racista é preciso ter fundamentos científicos ridículos, porque não se pode defender o racismo de uma posição científica. A ciência sempre introduziu uma tensão política neste mundo que tinha algo a ver com um proto-iluminismo. Desde o primeiro momento temos de pensar, por exemplo, quando o escravo de Ménon deduz o teorema de Pitágoras na frente de Ménon e Sócrates, e ele dedu-lo por conta própria, eu acho que a questão está colocada desde o primeiro momento, a de se, face ao teorema de Pitágoras, escravos e cidadãos são iguais. Tem um efeito moral imediato, um efeito político importante. O facto de, perante a objetividade científica, sermos todos iguais: os ricos, os pobres, os homens, as mulheres, os negros, os brancos. Isso, de certa forma, introduz neste mundo uma tensão política à qual o iluminismo e a Revolução Francesa chamaram igualdade.
RL: Há uma passagem muito bonita do texto de Brecht sobre Galileu onde ele fala sobre o conhecimento que estava a desenvolver. E ele diz que gostaria que também o filho do açougueiro tivesse acesso a esse conhecimento.
RV: A única coisa que eu queria acrescentar sobre esta questão é que mesmo quando olho para os programas de História, o programa diz que tem de ensinar-se a boa convivência entre os povos, e isso acarreta um duplo problema. O primeiro é que o nazismo não é uma boa convivência entre os povos. E isso é história. O segundo é que coloca a escola não apenas como um lugar de pregação moral, mas em contradição com a verdade, porque as crianças, quando saem da escola não estão em boa convivência, porque é uma sociedade profundamente dividida por classes sociais e por brutais desigualdades. Então, é como se o professor fosse chamado a mentir. As crianças precisam de emancipar-se. Na verdade, é o contrário: para se emanciparem é necessário um choque com a boa convivência, com as classes dominantes. Têm de enfrentar a burguesia para conseguir uma boa convivência. Então, é como se o professor de História fosse um moralista a pregar a resignação social. Não é apenas obscurantista, tem um propósito que parece muito, muito progressista, mas na verdade é o oposto. O professor torna-se ator. Não alguém que tenta entender a história nas suas complexidades, mas alguém que se torna um propagandista.
CFL: Quando explicas a história com rigor e objetividade, aprendes a formar política e moralmente. Quando compreendemos as verdadeiras causas que estavam em jogo em cada batalha, em cada guerra, isso molda-nos politicamente. Mas o que distorce é o catecismo das boas maneiras, inspirado em não sei que programa ideológico, de não sei que partido que ganhou as eleições.
Quero saber mais sobre:
Raquel Varela
historiadora, professora universitária
Roberto Leher
professor universitário