“O reconhecimento da Palestina é uma manobra de diversão dos cúmplices do genocídio”
O ativista e investigador palestiniano Naji El Khatib, que esteve há meses numa palestra no Porto, refere, em entrevista à página francesa em linha Reporterre, que o reconhecimento de um Estado palestiniano pela França é, acima de tudo, marketing político. Ele lembra que a colonização continua entretanto, com a cumplicidade material da França. O leitor notará que tudo o que Naji El-Khatib diz se aplica na íntegra ao reconhecimento da Palestina pelo Estado português e à figura cínica e sinistra feita pelo ministro Rangel e pelo presidente Marcelo.
Entrevista com Naji El Khatib
Que pensa do anúncio de Emmanuel Macron de reconhecer o Estado palestiniano?
Naji El Khatib Este anúncio suscita-me, em primeiro lugar, muitas dúvidas. Agirá Emmanuel Macron por sentimento de culpa, ou será, antes, um caso de cálculo político, para recauchutar a sua imagem, quando há agora uma queixa apresentada contra ele no Tribunal Internacional de Justiça, por cumplicidade com genocídio? Neste contexto, custa não ver neste gesto uma manobra de diversão. Há meses que a rua francesa se mobiliza contra os massacres em Gaza e pelos direitos dos Palestinianos.
No entanto, não acredito que Macron esteja a agir por remorso. Os seus aliados dizem-no cínico: parece-me que o reconhecimento é principalmente uma ferramenta de comunicação política. Chega tarde, muito tarde. Já mais de 140 países reconheceram o Estado palestiniano. Acima de tudo, porém, este Estado, o Estado derivado dos acordos de Oslo (1993), é um “Estado fantoche”, incapaz de responder às necessidades reais dos Palestinianos.
Hoje, os territórios reservados a um futuro Estado palestiniano correspondem a uns meros 10% da Palestina mandatária original. Falo como refugiado: a minha família foi expulsa de Jaffa em 1948. Ora, 60% dos palestinianos partilham esse destino do exílio forçado. A questão do direito ao regresso sempre foi excluída das negociações.
O que nos é proposto não é um Estado viável, é um simulacro que ratifica o esquecimento de centenas de milhares de expulsos. Por isso falo de uma farsa, perigosa para os direitos históricos do povo palestiniano, do rio até ao mar.
Acusa a França de cumplicidade com Israel. Em que consiste a cumplicidade, na sua opinião?
Naji El Khatib Em primeiro lugar, cumplicidade material. A França nunca deixou de fornecer armas e munições a Israel. Novos carregamentos partem regularmente do Aeroporto de Roissy. Há também empresas francesas a fornecer tecnologias utilizadas nos drones israelitas. Esta cadeia de produção alimenta diretamente a máquina de guerra.
Há, todavia, resistência: os estivadores de Marselha têm-se recusado a carregar caixas destinadas a Israel. Já o Estado francês continua. Como se pode pretender estar a reconhecer o direito dos Palestinianos à autodeterminação se, ao mesmo tempo, se arma quem os bombardeia e coloniza a sua terra?
Cumplicidade, igualmente, política. A França não impôs nenhuma sanção, apesar de dispor de meios de pressão económica e diplomática significativos. Permanecer em silêncio diante de um genocídio é participar nele. O coletivo de 114 advogados que está por detrás da queixa contra o Estado francês evoca-o com clareza: não agir para impedir um crime é ser cúmplice dele. Macron tenta mascarar essa responsabilidade com um reconhecimento do Estado palestiniano, mas a realidade é outra: fornecimento de armas, nenhuma sanção, inércia diplomática. Tudo isto configura participação direta e indireta no genocídio.
Mesmo assim, que consequências concretas pode ter o reconhecimento?
Naji El Khatib Em política, o simbolismo só tem peso se se traduzir em relações de força. Reconhecer o Estado palestiniano sem agir contra o agressor não muda nada. Enquanto a colonização continuar a avançar, enquanto se multiplicarem os ataques de colonos armados, assim como as barragens de controlo, é do foro da ilusão andar a falar de Estado palestiniano.
Para o reconhecimento ter sentido, seriam necessárias medidas concretas: sanções económicas, embargo militar e científico, retirar o embaixador. A França tem meios para fazê-lo. Mas não há sinais que indiquem tal vontade. Este anúncio é, portanto, uma manobra do foro do marketing político e, o que é pior, sem sanções nem medidas concretas, o risco é que a seguir se acelere a colonização e os territórios palestinianos se fragmentem.
O que pensa da iniciativa da Flotilha da Liberdade para Gaza?
Naji El Khatib É um ato de coragem essencial. Perante o bloqueio e o genocídio, não podemos manter-nos espectadores. A Flotilha procura quebrar o isolamento de Gaza e levar ajuda vital a uma população atingida pela fome e pelos bombardeamentos. Centenas de pessoas já perderam a vida por falta de comida ou de cuidados médicos.
Eu próprio participei na Marcha para Gaza, no Egito, em junho. A iniciativa malogrou-se, mas encarnava essa vontade de “fazer algo”. A Flotilha inscreve-se na sua continuidade: encarna uma forma de esperança, provando que há gente, noutras partes do mundo, que não se contenta em manifestar-se, que está pronta a correr riscos perante uma máquina de guerra.
Isto é tanto mais importante, quanto o Estado israelita tenta tirar legitimidade a estas ações e preparar os espíritos para ataques contra elas. Os participantes são muitas vezes caricaturados como “terroristas” ou “jihadistas", tal como aconteceu com o ataque ao barco turco que rumava a Gaza em 2010. Apesar dos riscos, a Flotilha não deixa de ser um gesto concreto de solidariedade.
Há muitos ativistas ecologistas a participar na Flotilha. Como entende esta ligação entre a luta pela Palestina e as lutas ambientalistas?
Naji El Khatib A expropriação da Palestina não afeta apenas terras e casas: também transforma o ambiente. Desapareceu de toda a Galileia o tomilho selvagem, o zaatar. As florestas plantadas por Israel com espécies importadas da Europa destruíram as plantas locais e apagaram os vestígios das aldeias palestinianas destruídas em 1948. Com os bombardeamentos maciços, Gaza está a tornar-se inabitável, os solos, contaminados.
Genocídio e ecocídio andam de mãos dadas. Defender a Palestina é defender, ao mesmo tempo, um povo e o seu ambiente, a sua cultura e a sua ligação à terra. Por isso é tão importante a presença de ativistas ecologistas na Flotilha. Lembra que a luta pela Palestina é também uma luta por terras viáveis e um ambiente habitável. São lutas que não estão separadas, estão profundamente ligadas.