Jornal Maio

Habitação como direito humano: um plano de ação

Hoje, ter um tecto digno tornou-se um símbolo de servidão moderna.
De um lado, rendas de 1500 euros para quem aufere apenas 900. Do outro, créditos que amarram famílias a dívidas de 30 ou 40 anos, transformando o sonho da casa própria numa prisão financeira disfarçada de conquista.

Pense nisto um instante.
Imagine-se a entregar entre metade e quatro quintos de tudo o que ganha, todos os meses, apenas para ter onde dormir. Isto é razoável?
O que diz sobre um país que já não consegue garantir o mais básico dos direitos: um lugar para morar?

Este texto não é um grito no vazio. É um apelo à acção. Um convite à esperança activa. Já não há tempo para esperar milagres vindos de cima.
Cabe-nos a nós agir: propor, organizar, unir forças, criar cooperativas e exigir soluções concretas e rápidas de quem foi eleito — e pago — para servir o interesse público.

A chegada de um milhão e meio de imigrantes — na sua maioria jovens, com vontade de trabalhar e construir família — é uma oportunidade de renascimento para o país.
Portugal nunca foi uma terra de pureza ariana ou mentalidade nazi. Sempre foi um território de encontros, de mistura, de miscigenação. E é dessa mistura que nasce a nossa força e o nosso encanto.
É tempo de preparar as pequenas cidades e vilas esquecidas para acolher, integrar e crescer, com inteligência, humanidade e visão de futuro.

A crise da habitação não caiu do céu. É o resultado directo de políticas que privilegiaram o lucro especulativo sobre o uso social do solo.
A resposta exige acção musculada e organizada: construir, e muito, com custos controlados, para quem vive do seu salário.

Mas as medidas pontuais já não bastam.
É preciso enfrentar três travões estruturais: o preço escandaloso da terra, o monstro da burocracia, e um sistema de financiamento que mais complica do que ajuda.

O plano que se segue organiza-se em seis pilares, pensados para devolver à habitação o seu estatuto original: um direito humano.

Pilar 1: Banco nacional de terras e direito de superfície

A raiz do problema está no preço do solo urbano.
A proposta é clara: criar um Banco Nacional de Terras, reunindo terrenos públicos e imóveis devolutos.
O Estado deve assumir o papel de promotor urbano: adquirir e gerir terrenos para os colocar ao serviço da sociedade, e não do lucro.

Não se trata de vender, mas de ceder o uso, através do direito de superfície (artigo 1524.º do Código Civil), que permite construir em terreno alheio sem adquirir a propriedade.


Mas as medidas pontuais já não bastam.
É preciso enfrentar três travões estruturais: o preço escandaloso da terra, o monstro da burocracia, e um sistema de financiamento que mais complica do que ajuda.

Assim, ao ceder esse direito a cooperativas ou entidades públicas — sem alienar o solo — o Estado garante duas coisas essenciais:

1. O terreno permanece público;

2. O custo do solo desaparece da equação do preço final da casa.

Este modelo não é utopia: é o que sustenta, há quase um século, a política habitacional de Viena, onde o solo urbano é controlado pelo município.
O resultado? Rendas justas, bairros integrados e uma cidade verdadeiramente acessível.

Chega de projectos mastodônticos e caríssimos. A solução está na proximidade.
Portugal tem mais de três mil freguesias. Se cada uma identificasse terrenos para cinquenta casas por ano, teríamos cento e cinquenta mil novas habitações anuais.

Terrenos agrícolas abandonados — e são milhares — devem fazer parte da equação.
Usá-los com critério é mais útil do que deixá-los arder todos os verões.
A revisão da Lei dos Solos deve travar a especulação, mas permitir o uso responsável do solo para habitação.
O Estado deve comprá-los e cedê-los em direito de superfície, livres da lógica especulativa.

Este modelo descentralizado traz clareza, participação local e menos espaço para abusos.
Entre o banco central de terras e a execução local nasce o equilíbrio: nem centralismo cego, nem descentralização caótica.

 

Pilar 2: Da burocracia asfixiante à agilidade digital

Continuamos presos a regulamentos herdados de 1951.
É urgente substituí-los por um Código da Construção moderno, flexível e orientado para resultados — que integre novas soluções, como as tiny houses.

Estas casas compactas — 25 m² por cerca de 20 mil euros — podem devolver dignidade a milhares de pessoas.
Mas a legislação actual impede-o.

A ideia de que todas as casas devem ser 100% acessíveis soa bem nos gabinetes técnicos, mas ignora o bom senso: exigir que todas sirvam a todos é como obrigar todas as motas e carros a ter elevador para cadeiras de rodas.

Também o licenciamento, muitas vezes, está capturado por redes de favores e caprichos pessoais. Precisamos de transparência, digitalização e inteligência artificial para libertar o processo.

Propõe-se o reconhecimento legal da autopromoção até 150 m², com atribuição directa do alvará de construção ao dono de obra, sem necessidade de ter um empreiteiro intermediário (tal como sucede noutros países, como em França).

Medidas concretas:
• Substituir o alvará por recibo de pagamento
• Atribuição de alvará directamente ao dono de obra (até 150 m2)
• Deferimento automático se os prazos forem ultrapassados;
• Via verde para cooperativas de habitação;
• Plataforma nacional única de licenciamento digital;
Checklists claras;
• Fim do pingue-pongue burocrático;
• Licenciamento com condicionantes;
• Facilitar glampings com tiny houses e espaços comunitários.

 

Pilar 3: O cidadão autopromotor e o modelo cooperativo reinventado

Uma das formas mais eficazes de reduzir o custo da habitação é retirar os intermediários comerciais do processo.
Em países como a Áustria e a Alemanha, mais de metade das novas casas são promovidas pelos próprios cidadãos: os Baugruppen.

Autopromoção não é auto-construção: é assumir o papel de promotor, negociar, planear e controlar custos.
Esta abordagem reduz encargos em 30% a 40%.

Para viabilizar este modelo, criem-se cooperativas de apoio à autopromoção, com suporte jurídico da CASES (Fundação António Sérgio).
Estas cooperativas não constroem — capacitam:
• Apoio técnico-jurídico (arquitectos, engenheiros, juristas);
• Central de compras (materiais mais baratos);
• Bolsa de mão-de-obra qualificada;
• Apoio à gestão de obra;
• Plataforma para financiamento solidário.

Sindicatos, IPSS e associações podem apoiar os promotores destas cooperativas, mobilizando associados e ajudando a negociar e desbloquear terrenos com as autarquias.

A mudança começa assim: com pessoas que se organizam. Com famílias, vizinhos e amigos que decidem construir juntos — e libertar-se, juntos, da dependência e da especulação.

Paralelamente é preciso repensar: criar espaços partilhados, sustentáveis e centrados na vida comunitária. A arquitectura não é apenas estética, é acto social e instrumento de inclusão.

 

Pilar 4: A alavanca fiscal – uma reforma estratégica do IVA

Hoje, a carga fiscal representa até metade do custo final de uma casa.
É absurdo.

A proposta: IVA reduzido para construção e reabilitação de habitação acessível — prática comum na Europa.

A Directiva 542 de 2022 permite essa margem:

- França aplica 5,5% para habitação social e obras de eficiência energética;

- O Luxemburgo aplica 3% para residências principais;

- A Itália, 4% na aquisição da primeira casa.
Se Portugal seguir este caminho, o impacto será imediato e profundo na vida de centenas de milhares de cidadãos.

 

Pilar 5: O pilar público – um mercado regulado e justo

Em Viena, 60% da população vive em habitação pública ou cooperativa.
A cidade gere directamente 220.000 apartamentos e outros 200.000 através de cooperativas.
Tudo financiado por uma taxa nacional de 1% sobre os salários, dividida entre trabalhadores e empregadores.

Assim, a habitação torna-se instrumento de justiça social e de regulação do mercado.
Os promotores privados continuam a existir, mas sem monopolizar o direito à casa.

Portugal precisa de um compromisso semelhante — político, financeiro e de longo prazo.
O Estado pode ainda ceder habitações degradadas, em regime de direito de superfície, a cooperativas.
Os próprios moradores podem reabilitá-las, contabilizando o seu trabalho como crédito.

Imagine-se sem casa. E imagine que lhe oferecem a possibilidade de recuperar uma habitação com o apoio da sua comunidade. O que faria?

 

Pilar 6: Construir diferente – inovação, ecologia e Industrialização

Não podemos encarar os desafios do século XXI com ferramentas do século XIX.
O modelo tradicional — tijolo, betão e lentidão — faliu.

O sector precisa de uma revolução verde e industrializada: construções rápidas, sustentáveis, termicamente eficientes e com baixo impacto ambiental.

A madeira, o cânhamo, a cortiça, o aço leve e o CLT são as novas colunas de um futuro habitável.
E são também o motor de centenas de pequenas empresas locais, capazes de criar emprego e responder com agilidade.

Reactivar escolas industriais, formar jovens e adultos, canalizar fundos públicos para o terreno — é assim que se constrói um país.

 

Um ecossistema virtuoso para o direito à habitação

Estes seis pilares formam um todo coerente:
1. O Banco de Terras garante solo acessível;
2. A reforma burocrática destrava o sistema;
3. As cooperativas empoderam cidadãos;
4. A reforma fiscal reduz custos;
5. O parque público regula o mercado;
6. A industrialização ecológica acelera a construção.

Com autopromoção e IVA reduzido, é possível ter casas com rendas abaixo dos 350 euros — justas, dignas e sustentáveis.

O maior obstáculo?
A mentalidade de dependência e resignação. A crença de que nada muda.

Mas muda — quando as pessoas se juntam, quando percebem que podem construir o seu futuro com as suas próprias mãos, com ajuda mútua e solidariedade.

Este é o convite, não é apenas um plano, é um chamamento à acção.

Porque a casa não é mercadoria.

É lar. É refúgio. Amor. Vida. É direito humano.

Jorge Van Krieken

Jorge Van Krieken

Green Heritage, ecoHomes.