Das revoltas às greves
Em dezembro de 1831 escrevia o francês Journal des Débats: “A nossa sociedade comercial e industrial tem a sua praga como todas as outras sociedades. Essa praga são os operários. Mas não existem fábricas sem operários!”
O capitalismo industrial reduziu a esperança média de vida dos operários, enquanto a das classes mais abastadas ou da “classe média” crescia vertiginosamente. Alguns trabalhadores entregavam-se ao alcoolismo. Outros rebelavam-se contra as máquinas e as fábricas, destruídas em Lancaster (1769) e no Lancashire (1779), anunciando o movimento dos “destruidores de máquinas” (luditas). Proprietários e governo organizaram uma defesa militar para proteger as empresas. Em 1803, Thomas Spence escreveu: “Em vez de trabalhar apenas seis dias por semana, somos obrigados a trabalhar oito ou nove, e, no entanto, mal conseguimos subsistir... e ainda e sempre ouvimos gritar: trabalha, trabalha, não estejas a mandriar... Nós, Deus nos ajude, caímos sob o jugo do mais endurecido conjunto de patrões que já existiu.” A declaração, publicada, valeu ao seu autor uma sentença de três anos de prisão.
Com a rotina imposta pelo sistema fabril, o operário assalariado tinha, como únicas alternativas, a submissão ou a inanição e a morte. Foi-se gerando uma vontade coletiva de mudança, de melhoria das condições de trabalho e de vida e até de abolição do capitalismo. La Chanson des Canuts (os tecelões), composta depois da insurreição operária na cidade de Lyon, em 1831, testemunhou a miséria operária francesa e a revolta social dos trabalhadores, e incorporou-se no cancioneiro popular do país, com o seu refrão desafiador: Nous sommes les canuts, nous n’irons plus nus! No Journal des Débats francês de dezembro de 1831, imediatamente posterior à primeira insurreição operária de Lyon, podia-se ler: “A sedição de Lyon revelou um grave segredo, o da luta intestina que tem lugar na sociedade entre a classe que possui e a que não possui. A nossa sociedade comercial e industrial tem a sua praga como todas as outras sociedades. Essa praga são os operários. Mas não existem fábricas sem operários! E com uma população de operários sempre crescente, sempre necessitada, não há repouso para a sociedade. Cada fabricante vive na sua fábrica como os plantadores das colónias no meio dos escravos, na condição de um contra cem.” Um historiador que estudou a classe operária parisiense na primeira metade do século XIX, composta por umas 63.500 pessoas, não vacilou em qualificá-la de “naturalmente criminosa”.
“A greve é escandalosa porque incomoda precisamente aqueles a quem ela não diz respeito. É a razão que sofre e se revolta.”
A aproximação entre a moderna escravidão assalariada e a escravidão colonial não era inapropriada. A comparação das duas formas de escravidão (a metropolitana e a colonial) talvez revelasse até desvantagem para os trabalhadores “livres” da metrópole: numa petição de operários ingleses, estes referiam-se à melhor condição de vida dos escravos americanos que, ao menos, trabalhavam ao ar livre. A burguesia descobria a luta de classes do regime capitalista. Uma forma de luta utilizada nos primórdios do movimento operário foi o boicote, palavra derivada do nome de um oficial inglês encarregado de administrar os negócios do Conde Erne, da Irlanda. Sir Boycott era conhecido pelos seus métodos truculentos no tratamento com os empregados. Recusava-se a negociar e os trabalhadores passaram a fazer o mesmo, propondo que os habitantes do povoado não consumissem os produtos do conde, que teve um grande prejuízo e afastou o oficial inglês do cargo. A sabotagem também foi usada nesse período como mecanismo de pressão dos trabalhadores. O termo tem origem francesa e deriva de sabot, que significa tamanco. Os operários franceses usavam esse calçado para danificar as máquinas, emperrando a produção. O salto na ação desse jovem proletariado deu-se com o recurso à greve para pressionar o patronato. A origem do termo encontra-se na Place de Grève, atualmente Hôtel de Ville, em Paris. Quando desempregados ou para tratarem de assuntos relativos ao trabalho, os operários costumavam reunir-se ali.
Para a nova classe capitalista, a greve era inadmissível. Nas Mitologias, Roland Barthes escreve: “A burguesia, que assumira o poder há pouco tempo, executa uma espécie de crase entre a moral e a natureza, oferecendo a uma a caução da outra; temendo-se a naturalização da moral, moraliza-se a natureza, finge-se confundir a ordem política e a ordem natural, e conclui-se decretando imoral tudo o que conteste as leis estruturais da sociedade que se quer defender. Para os prefeitos de Carlos X, a greve constitui, em primeiro lugar, um desafio às prescrições da razão moralizada: fazer greve é mais do que infringir uma legalidade cívica, é infringir uma moralidade ‘natural’, atentar contra o bom senso, misto de moral e de lógica, fundamento filosófico da sociedade burguesa (...) A greve é escandalosa porque incomoda precisamente aqueles a quem ela não diz respeito. É a razão que sofre e se revolta (...) Face à mentira da essência e da parte, a greve institui o devir e a verdade do todo. Ela significa que o homem é total, que todas as suas funções são solidárias umas das outras, que os papéis de utente, de contribuinte ou de militar são muralhas demasiado frágeis para poderem opor-se à contaminação dos factos, e que, numa sociedade, tudo diz respeito a todos. Protestando contra a greve que a incomoda, a burguesia revela a coesão das funções sociais.” A greve prejudicava a produção, mas recuperava a humanidade.
¹Do personagem Ned Ludd, alegado fundador do movimento.
Osvaldo Coggiola
Historiador e professor universitário
USP aposentado