COLUNA VERTEBRAL
As palavras pesam:
aura & educação
É triste quando um ministro – que é também professor – não compreende que, como escreveu Carlos de Oliveira (1921-1981), poeta e ficcionista que Alexandre não deverá nunca ter lido, “as palavras pesam, mais do que as lajes ou a vida”.
António Carlos Cortez
Professor de Português e de Literatura Portuguesa, poeta, ensaísta e crítico literário
De facto, as palavras pesam. Aura é uma delas. Para Walter Benjamin é justamente a ausência da aura uma das causas daquilo que era já, no seu tempo, sintoma de decadência do Ocidente. Ou da cultura ocidental, com epicentro na Alemanha. Sem aura, a Europa estava refém, desde meados do século XIX, de uma mentalidade e de uma acção políticas sem qualquer outro fim que não o do lucro, o do mecanicismo mais soez. É justamente a aura (ou a auréola) o que cai no boulevard de Paris num conhecido poema de Baudelaire: aura como sinónimo de qualidade única e autêntica, inscrição no tempo e no espaço de um sujeito que transporta consigo uma presença. Uma presença de espírito. Baudelaire teria visto, segundo Benjamin, a Modernidade como tempo técnico em que tudo é mercadoria. O poeta, esse, no boulevard, depois da queda da aura, não volta atrás: na Modernidade técnica já não hipótese aurática de estarmos no mundo.
Fernando Alexandre tem da educação, como tantos outros responsáveis por esta tutela, uma concepção mecânica e instrumental da profissão de professor. O professor, para ele e a sua equipa, é um mero executor de tarefas ditadas de cima, dos superiores. A aura que um professor possa ter, perde-se, disse o ministro, quando o professor se manifesta na rua. Mas acontece que o direito à indignação existe e, no fundo, se olharmos para os últimos 25, 35 anos da educação em Portugal, foi justamente por sucessivas políticas educativas lesarem a aura dos professores que estes se transformaram em frágeis actores educativos. Criou-se mesmo, nas escolas e na universidade, uma mentalidade servil que garantiu a muitos professores a subida nas carreiras, a obtenção de lugares de chefia. O preço foi a perda da aura. Um professor, na verdade, se tem desta profissão uma consciência histórica, saberá que, em algum momento da sua vida de estudante, terá tido um ou outro professor que o marcaram precisamente porque as aulas tiveram aura.
Com livros, com memória e com coragem, o ensino público defende-se quando os professores têm a aura. Ou têm a coragem de dizer não à formatação em curso
No tempo em que vivemos, quando a atmosfera geral é de rarefacção das democracias e da liberdade nas escolas, julgo que estas palavras de Fernando Alexandre encerram um sentido que não posso desvincular de uma outra palavra que também tem peso: obscurantismo. A história do ensino e da cultura em Portugal é a história da luta de uns poucos homens e mulheres com aura contra os mandos e desmandos de decisores que detestam a aura desses poucos. Lembro um livro de Joaquim Barradas de Carvalho, O Obscurantismo Salazarista (Seara Nova, 1976), no qual o historiador elenca os muitos professores das mais diversas áreas que, no fascismo, foram perseguidos e, por via disso, se exilaram, emigraram, indo ensinar em escolas e universidades no estrangeiro. A lista de homens e de mulheres de sólida formação científica e cultural é enorme. Mas é em Isabel Aboim Inglês que se reúne a questão maior da perseguição dos regimes obscurantistas a figuras de grande craveira cultural e com aura. Proibida de ensinar na universidade, proibida de dirigir um colégio que fundou, a sua licença de ensino foi-lhe retirada. Igualmente foi perseguida ao ponto de deixar de facultar explicações privadas. Convidada a leccionar no Brasil, o fascismo cassou-lhe o passaporte. Tornou-se, para sustentar a sua família, costureira, morrendo pouco depois… A sua filha, professora também, igualmente mereceu o ódio da ditadura.
Sócrates, o filósofo, mestre de Platão, Jesus de Nazaré, mas também nomes capitais da cultura e da política nos últimos cem anos – de Anna Arendt a George Steiner, de Alain a Sartre, de Unamuno a Rafael Argullol, de Ernest Curtius a Umberto Eco – foram professores. Tinham a aura da comunicação com que as aulas se tornaram lugares do espírito, do encontro entre espíritos. De Gaulle, aquando das manifestações de Maio de 68, disse de Sartre, mestre de gerações de estudantes, o seguinte: “Não se pode calar Voltaire.” E na luta contra o obscurantismo fascista, Lindley Cintra, “o Príncipe”, linguista e homem de densa cultura – nunca hesitou em exercer a sua aura: defendeu, com risco físico, os estudantes que lutavam contra a guerra colonial e pela liberdade. David Mourão-Ferreira, Vergílio Ferreira, Maria de Lurdes Belchior, João Bénard da Costa, Paulo Freyre, eis alguns nomes da história da educação que detinham essa rara qualidade, esse raríssimo fogo da energia vital, essa singular autenticidade da alma a que chamamos aura. As aulas, senhor ministro, sem aura, são a “seca” de que os estudantes, com razão, se queixam. E, no fundo, os professores, tão desprezados nestes últimos 30 anos, para voltarem a ser professores, necessitam é que um ministro lhes fale da aura perdida e de como se pode recuperar essa aura.
APOIA O MAIO!
Os trabalhadores nunca precisaram tanto de uma voz independente. Ajuda-nos a defender os teus direitos. Apoia o Maio!
As suas palavras denunciam, em rigor, o desejo de que os professores sejam a carneirada obediente com que sempre os poderes contam para mandar e desmandar. Professores que se manifestam contra políticas que visam empobrecer a qualidade das aulas, justamente porque sabem que um professor com aura é um homem livre e consciente, e por isso perigoso porque se manifesta, isso é o que está por detrás da sua infeliz observação. Se puder, senhor ministro, leia As Lições dos Mestres. É um livro urgente para quem, tutelando a pasta da Educação num país onde nenhum político transporta a aura com que libertar o povo do ódio e da intriga que nos mina, diz que a aura se perde quando há manifestações.
Não, Fernando Alexandre, caro colega: mais do que nunca, com livros, com memória e com coragem, o ensino público defende-se quando os professores têm a aura. Ou têm a coragem de dizer não à formatação em curso. Um professor não pode ser um funcionário como Eichmann. Esse perdeu a aura e a alma. Nós não.