A greve, o direito fundamental dos trabalhadores que o Governo quer aniquilar
O objectivo é, claramente, o de inutilizar e destruir o direito à greve, mas sempre declarando demagogicamente respeitá-lo
O direito à greve é um direito absolutamente basilar dos trabalhadores. Sem direito à greve não há liberdade sindical nem há verdadeiro direito do trabalho.
Não seguramente por acaso, e bem ciente de que “a união faz a força”, desde os primórdios do capitalismo que a nova classe dirigente tratou de proibir todas as formas de organização e de luta colectiva dos trabalhadores, sendo disso a primeira e mais evidente demonstração a chamada “Lei Chapelier”, de 14 de Julho de 1791, nos termos da qual e sob o pretexto do combate ao corporativismo medieval e às tentativas de o fazer ressuscitar e sob a alegação da liberdade de empresa e de iniciativa económica, foram proibidas, de forma expressa, não só as associações de classe dos operários (os sindicatos) como também as manifestações, as greves e quaisquer outras formas de luta colectiva.
Tal proibição foi imposta na pátria da revolução burguesa à força de massacres e fuzilamentos como os de Julho do mesmo ano de 1791, no Champ de Mars, tendo apenas sido revogada, após muito sangue, suor e lágrimas, em Maio de 1864.
Em Portugal, em meados do século XIX, a greve era tratada e proibida como matéria do campo do direito penal, punindo-a os Códigos Penais de 1852 e de 1886 com prisão maior.
Com a I República, a suposta regulamentação do direito à greve serviu apenas para tratar de o condicionar e limitar. E assim, violando aliás o compromisso que os conspiradores republicanos haviam assumido com os dirigentes sindicais, foi publicado o Decreto de 6 de Dezembro de 1910, que, por tal razão, ficou conhecido como “decreto-burla” e de “infâmia”. Na verdade, este diploma legal impunha pré-avisos muito amplos, admitia o “lock-out” patronal chamado defensivo (ou de resposta ou de retaliação), impunha o escrupuloso respeito pela “ordem pública” e pelos regulamentos policiais e negava o direito à greve aos assalariados do Estado ou dos corpos administrativos. E, coerentemente com esta posição, a Constituição de 1911 omitiu qualquer consagração do direito à greve.
Com o fascismo, o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN) – diploma fundamental do regime corporativo de Salazar, o qual, datado de 1933 e inspirado na Carta del Lavoro de 1927, de Mussollini, contém os princípios fundamentais da organização corporativa – proclamava, no seu art.º 11.º, em consonância com o consagrado no art.º 35.º da Constituição de 1933, que “a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade”, e no seu famigerado art.º 22.º que “o trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo”.
Ao abrigo deste tipo de concepções institucionalistas e autoritárias, o mesmo ETN proibia e punia a greve e estabelecia, no seu art.º 9º, n.º 2, ser “acto punível a suspensão ou perturbação das actividades económicas (…) pelos técnicos, empregados ou operários, com o fim de conseguir novas condições de trabalho ou quaisquer outros benefícios ou ainda de resistir a medidas de ordem superior conformes com as disposições legais”, e no seu art.º 16.º que “os interesses ou direitos do Trabalho” nunca poderiam “prevalecer contra o direito de conservação ou amortização do capital das empresas ou do seu justo rendimento”.
A essência destas concepções político-filosóficas era, pois, a da negação, pura e dura, do conflito de interesses e, claro, de qualquer forma de autotutela ou de luta colectivas, com a consequente obrigação – estatuída no seu art.º 5.º – dos trabalhadores e das suas organizações de agirem sempre “com espírito de paz social e subordinando-se ao princípio de que a função de Justiça pertence exclusivamente ao Estado”.
Os sindicatos, cujo regime legal constava de outro diploma, e que representavam todos os trabalhadores da mesma categoria, fossem filiados ou não, eram denominados “sindicatos nacionais”, qualificados como entidades de direito público (art.º 3.º do mesmo diploma), ficando os seus estatutos sujeitos à aprovação prévia do Governo, e na sua actividade regular estavam “directamente dependentes do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência – INTP”, mas, no tocante à chamada “ordem pública”, encontravam-se significativamente submetidos às autoridades administrativas, designadamente as policiais (art.º 8.º).
E a realização da greve nos chamados sectores ou serviços “essenciais” era prevista e punida no Código Penal como crime punível com prisão maior.
Na sequência do 25 de Abril de 1974, o direito à greve foi um dos primeiros e principais direitos a ser imposto na prática pelos trabalhadores portugueses. E por isso mesmo foi rapidamente aprovado o Decreto-Lei nº 392/74, de 27 de Agosto, o qual, inspirando-se muito de perto no diploma de 1910, proclamou formalmente no seu art.º 1.º o direito à greve, mas esvaziou-o quase por completo de conteúdo nos artigos seguintes, nomeadamente admitindo o lock-out por parte dos patrões, proibindo a greve por motivos políticos ou religiosos ou até por simples solidariedade.
E precisamente porque ele não conseguiu ser aplicado na prática é que foi aprovado o ainda hoje em vigor – tão apreciado por patrões e Governos – e famigerado diploma legal de reposição civil (Decreto-Lei n.º 637/74, de 20 de Novembro).
No quadro jurídico-constitucional actual, o direito à greve, consagrado no art.º 57.º da Constituição de 1976, é um direito social fundamental dos trabalhadores, de natureza e com regime análogos aos direitos, liberdades e garantias e por isso todas as suas limitações ou restrições têm forçosamente de estar sujeitas aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e têm de estar justificadas por um eventual conflito com direitos com idêntica natureza e tutela constitucionais.
Por isso, no regime constitucional e legal actualmente em vigor, está prevista a definição, em cada caso concreto, dum regime de “serviços mínimos”, que visa a sua articulação, se e quando necessário, com outros direitos constitucionalmente tutelados (como é o caso, por exemplo, dos direitos à vida, à integridade física, a cuidados essenciais, etc.).
Por outro lado, o direito à greve constitui não apenas um direito fundamental dos trabalhadores como a sua principal arma de luta e, claro, só consegue ter essa natureza se tiver impacto e causar prejuízos. Greves “fofinhas” como as de 2 horas nas sextas-feiras à tarde – tão do agrado de algumas organizações sindicais e, claro, dos patrões – não tendo qualquer impacto, servem, afinal, dois objectivos: agradar aos patrões que pagam menos salários e, intensificando o ritmo na segunda-feira seguinte, obtêm a mesma produção, e permitir à classe dos capitalistas e aos seus governos afirmarem que, como se vê, até reconhecem o direito à greve…
São, pois, as greves que “doem”, isto é, as que causam impacto, que o Governo AD, com o apoio da IL e do Chega, pretendem agora impedir e proibir, passando ao mesmo tempo, uma mensagem clara aos trabalhadores que pretendam lutar pelos seus direitos.
Temos sempre e desde logo uma intensa manipulação mediática – com horas e horas de reportagem nas gares das estações da CP ou do Metro ou nos corredores dos hospitais para ouvir os lamentos e protestos dos que sofrem os atrasos dos transportes e as anulações de consultas, exames e cirurgias, mas nem um minuto para dar a conhecer as razões e as causas da luta ou para verificar como as administrações empresariais e as autoridades governamentais propositadamente não avisaram da greve, não adoptaram medidas alternativas e não reagendaram os exames e actos médicos, por exemplo, para assim tratarem de virar a opinião pública contra os trabalhadores em greve.
As greves na CP são, aliás, um verdadeiro “caso de estudo” pois, havendo um acordo estabelecido entre administração e sindicatos desde o início do ano, a implementação de tal acordo tem vindo a ser sucessiva e provocatoriamente adiada, primeiro porque o Governo (o primeiro de Montenegro) estava em “gestão”, depois porque o actual Executivo estava no início de funções, depois porque era período de férias de Verão e agora porque afinal ainda falta a ratificação governamental do mesmo acordo.
Para depois, quando vier a assim tornada inevitável greve na mesma CP e se repetir a habitual campanha mediática, administração e Governo virem invocar que não pode ser, greves destas não podem ser admitidas e que é preciso alterar a lei.
Ora, o que faz então o anteprojeto de lei de reforma da legislação laboral em matéria do direito à greve?
Uma vez que o objectivo é, claramente, o de inutilizar e destruir o direito à greve, mas sempre declarando demagogicamente respeitá-lo, por um lado, alarga-se o universo das empresas e serviços dedicados à chamada “satisfação de necessidades impreteríveis” e, por outro, impõe-se a necessidade da existência, sempre, de serviços mínimos em caso de greve em tais empresas ou serviços, independentemente das circunstâncias concretas de cada situação e possibilitando, para não dizer impondo, que os tribunais arbitrais (no caso das empresas do sector empresarial do Estado) ou os ministros do Trabalho e da tutela (em todos os restantes casos) estabeleçam sempre serviços mínimos, que podem ser, e tenderão deste modo a ser, serviços máximos.
Relativamente à primeira vertente, o anteprojeto acrescenta na alínea e) do n.º 2 do art.º 537.º o “abastecimento alimentar”, sem qualquer espécie de distinção (entre produtos de primeira necessidade e outros de todo supérfluos) e adiciona mais os “serviços de cuidado a crianças, idosos, doentes e pessoas com deficiência” (al. j)) e os “serviços de segurança privada de bens ou equipamentos essenciais” (al. k)).
E quanto à segunda vertente, estabelece no n.º 1 a tal aparentemente necessária e permanente existência de serviços mínimos – “em empresas ou estabelecimentos que se dediquem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, é devida a questão de serviços mínimos (…)” –, deixando ainda muito claro no art.º 538.º, nº 1 que a questão de decretamento dos referidos serviços mínimos não é a da sua existência ou não, visto que ela é dada como certa e assente, mas sim apenas da sua medida.
Termos assim que, onde actualmente a consagração do direito à greve como direito fundamental dos trabalhadores impõe que alguma sua restrição ou condicionamento tenha de ser visto e definido caso a caso, em funções das circunstâncias concretas de cada situação e sempre tendo presente a necessidade de respeitar os princípios (e limites…) constitucionais da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, o celerado anteprojeto busca impor como regra absoluta a necessidade e a permanência das restrições ao mesmo direito à greve nos referidos (e ora alargados) sectores das necessidades sociais impreteríveis e que são, afinal, e como resulta da lista do art.º 537.º, praticamente todos!
Trata-se, assim, de uma solução jurídica manifestamente inconstitucional por violação dos art.os 57.º, 17.º e 18.º da Constituição.
Mas trata-se sobretudo de um violento e emblemático ataque político contra quem trabalha, o qual, se saísse vitorioso, iria abrir o caminho para outras e mais violentas ofensivas anti-trabalhadores.
E é também por isso, diria mesmo sobretudo por isso, que este ataque não pode passar.