Jornal Maio

Greve geral:
Parar para Reparar

Os dois eixos jurídicos desta lei laboral que levou à greve geral são: permitir a “uberização” de todos os trabalhadores; e normalizar a semana de trabalho de 50 horas.

Os dois eixos jurídicos desta lei laboral que levou à greve geral são permitir a “uberização” de todos os trabalhadores e normalizar a semana de trabalho de 50 horas. Politicamente, o eixo principal é uma grande restrição dos direitos de greve e organização sindical. No conjunto, abre-se portas ao despedimento de funcionários públicos e a usar as nossas reformas para especular na bolsa. 

É este conjunto de medidas que levou a que se faça uma parada militar para celebrar o 25 de Novembro, tentando apagar o período revolucionário de 1974-75, com a mudança de regime em Portugal e o fim da guerra colonial. E o fim do momento mais democrático da nossa história, quando, nos locais de trabalho, se elegeram comissões democráticas com mandatos revogáveis se não cumprissem o decidido pelos trabalhadores. 

Quase 70% dos portugueses que trabalham ganham menos de 890€ por mês líquidos. O que propõem o Governo, a IL, o Chega… e o PS, que aprovou o Orçamento de Estado? 

Uberizar, como tarefeiros, motoristas de carga, médicos ou enfermeiros, professores; legalizar, nas cantinas, empresas de segurança; falências fraudulentas; permitir, na TAP, abrir uma rota nova com trabalhadores externos; com o banco de horas, deixar de pagar até 15% do salário de todos os trabalhadores; o horário de trabalho oficial passar para 50 horas. E precariedade para sempre, impedindo ter um lar, uma família, segurança, uma casa para viver e receber os amigos. Permitir o despedimento sem justa causa. Nada disto foi sequer sufragado na campanha eleitoral, onde Montenegro e a sua AD esconderam dos eleitores as suas intenções.

Não era preciso uma greve geral, diz o líder do Chega, financiado pela Paulo Duarte, Barraqueiro, bancos, grandes empresas de agricultura intensiva. Há que flexibilizar e despedir na função pública, diz a IL – na apresentação da sua candidatura esteve a CEO da empresa Hospital da Luz, de propriedade chinesa. A ministra do Trabalho de Montenegro, Palma Ramalho, tem um património declarado de mais de 5 milhões de euros e, pasme-se, por coincidência é mulher de António Ramalho, que acabou de receber 7 milhões de euros pela venda do falido Banco Espírito Santo a um fundo financeiro abutre do Texas. 

 

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Se amanhã Ramalho adquirir 10 imóveis para especulação com 7 milhões, esse património é seu ou nosso? Como podemos tolerar que quem trabalha não tenha o direito inviolável à sua própria casa?

Mais de um milhão de pessoas faz turnos noturnos em Portugal, que implicam, como mostram estudos, um aumento da taxa de cancro e outras doenças da ordem dos 35% em média, só pela quebra dos ciclos de sono. Mais de 50% dos portugueses trabalha até 70 horas semanais, sem contar a deslocação para o trabalho. 

Um casal, para viver com o mínimo de dignidade teria, segundo estudos sérios, de receber pelo menos 2500 euros por mês. Mesmo assim, só falamos de pagar o essencial. Como vivem os mais de 70% dos trabalhadores portugueses que recebem 800 euros? Hoje há mais de um milhão de trabalhadores sem direitos em Portugal. Se questionarem as condições de escravatura em que trabalham, podem ser expulsos, pois são imigrantes, criminalizados pela AD-Chega.

Uma greve não se decreta, organiza-se. Está em causa mais do que o pacote laboral, que já por si afeta mais de 8 milhões de trabalhadores e suas famílias. Se o Governo vencer e se mantiver em funções depois da greve e avançar com o pacote laboral, a sua classe social e o seu Estado já anunciaram o seu programa. Avançar com despedimentos na função pública (IL) e fazer as reformas e pensões entrarem na bolsa (AD, Chega e IL). 


Não foi isso a revolução, que a direita odeia e quer enterrar, celebrando o 25 de Novembro numa parada militar, com um orçamento de 5% do PIB para a guerra, maternidades fechadas — enquanto as mães, na Ucrânia, na Rússia e em Gaza, visitam os filhos no cemitério?

 

Esta greve geral pode ser um extraordinário momento de transformação e esperança para a maioria dos portugueses. A chave do seu sucesso está na própria capacidade dos seus líderes de abrirem espaço também a novos dirigentes, em vez de se eternizarem no poder nos sindicatos ou se deixarem anestesiar na concertação social. Com plenários em cada sector, reuniões onde todos possam falar (e sejam protegidos para isso, fazendo-o às escondidas se necessário), piquetes à porta das fábricas e empresas onde se converse, ouvindo todos e se decida que outras formas de luta se devem organizar, deixando a imaginação, dedicação e ousadia dos trabalhadores em coletivo pensar em como vencer — e que tipo de sociedade querem construir. 

O movimento social como um todo. É isso uma greve. Ela deve ser um espaço de equipas, cooperação, debate aberto e livre, decisões democráticas. E deve dialogar com todos – das lutas dos jovens contra as propinas às das populações do Fundão, Castelo Branco ou Montalegre, dos funcionários públicos contra o SIADAP às associações por vidas justas e habitação para todos. Juntar a esta luta o mais de um milhão de imigrantes, que não votam, mas trabalham e sustentam a segurança social. Temos de organizar em cada bairro, escola, hospital e fábrica espaços comuns de democracia real. Não é isso a democracia? Não foi isso a revolução, que a direita odeia e quer enterrar, celebrando o 25 de Novembro numa parada militar, com um orçamento de 5% do PIB para a guerra, maternidades fechadas, enquanto as mães, na Ucrânia, na Rússia e em Gaza, visitam os filhos no cemitério?

A greve é um acto de parar para reparar. Reparar o corpo exausto. Mas também reparar (olhar, pensar). Parar esta marcha delirante que nos arrasta para o precipício. 

Raquel Varela

Raquel Varela

Historiadora, professora universitária