“Abuso de hospitalidade”?
O primeiro-ministro Luís Montenegro declarou ser seu propósito “acabar com (…) o excesso de abuso da hospitalidade por migrantes”. Abuso de hospitalidade? O que é isso?
Michael Roberts
Economista
Na semana passada, o governo direitista de Portugal, pressionado pelo partido de extrema-direita fascista Chega, conseguiu pôr termo à possibilidade de imigrantes dos países dependentes virem trabalhar para Portugal. Até agora, era possível a muitos estrangeiros entrarem com um visto de turista e depois “manifestarem interesse” em trabalhar, acabando por obter autorização de residência. Agora, os imigrantes potenciais passam a ter de candidatar-se, nos seus países de origem, a vistos para trabalhar. Mas vejam só: a regra não é aplicável a candidatos a empregos “altamente qualificados”. Profissionais estrangeiros com “qualificações avançadas” continuam a poder entrar em Portugal para procurar emprego e trabalho desde que sejam contratados antes de o visto expirar. Analogamente, os trabalhadores “remotos” continuam a ser elegíveis para viver e trabalhar em Portugal.
As novas leis são notoriamente discriminatórias contra os imigrantes pobres dos países dependentes do Sul. O primeiro-ministro Luís Montenegro declarou ser seu propósito “acabar com (...) o excesso de abuso da hospitalidade por migrantes”. Abuso de hospitalidade? O que é isso? As estatísticas da Comissão Europeia indicam que a mão de obra migrante não enfraqueceu a economia portuguesa; fortaleceu-a! “800 mil imigrantes contribuem com mais de mil milhões de euros para o sistema de segurança social, ao passo que só recebem aproximadamente 257 milhões de euros em benefícios sociais, deixando um saldo positivo de mil e seiscentos milhões de euros”.
Há várias décadas que magotes de jovens deixam Portugal em busca de melhores oportunidades económicas noutros países da UE. Nos últimos anos, indianos, nepaleses e bengalis colmataram a lacuna deixada na força de trabalho portuguesa. Vêm trabalhar para explorações de frutos vermelhos no Alentejo agrícola. “Nós deixámos o nosso país. Jovens portugueses têm deixado o seu. Há quem não goste que nós cá estejamos, mas somos nós que estamos a revitalizar esta região e a fazer entrar cá muito dinheiro”, diz um trabalhador nepalês sob anonimato. “A razão principal por que Portugal tem visto aumentar o número de imigrantes é porque precisa deles”, diz Luís Pinheiro, ex-diretor da Agência para a Integração, Migração e Asilo (AIMA). O sector agrícola português continua em expansão rápida, particularmente devido à procura cada vez maior de frutos silvestres, que depende principalmente de trabalhadores da Ásia Meridional. Em 2023, as receitas de exportação de bagas atingiram quase 300 milhões de euros, sendo a maioria enviada para supermercados alemães e britânicos. “Portugal tem uma grande procura de mão de obra em certas áreas de atividade económica, e estes migrantes continuam a chegar porque há procura de mão de obra”. Longe de ser abuso, a imigração tem sido um trunfo essencial para a economia portuguesa, particularmente em sectores-chave da agricultura e da indústria do lazer, assente em salários baixos, que correspondem a empregos que os cidadãos portugueses resistem a procurar, por os salários serem muito baixos. O atual salário mínimo é de apenas 820 euros por mês, que mal deixa a quem trabalha o suficiente para sobreviver. Depois de custear o alojamento, as dívidas e o envio de dinheiro para a família, muitos trabalhadores imigrantes ficam com apenas 100-150 euros por mês. Muitas destas aldeias e vilas ficam longe das cidades, no Alentejo, o que torna mais difícil documentar violações de direitos humanos e laborais. Muitos suportam condições extraordinariamente difíceis. “É uma espécie de militarização do trabalho. Tens de obedecer a tudo, mesmo que seja a coisa mais estúpida que se possa imaginar. Se trabalhas 12 horas, devias receber pagamento de horas extraordinárias; mas eles pagam apenas 6,50 euros e ainda queriam mais horas. Isso era para os trabalhadores permanentes. Imagina agora para os temporários”, diz o ativista laboral do Alentejo Alberto Matos.
Paguei 3 mil euros por um visto através de uma agência em Deli, mais a passagem aérea. Trabalho a colher frutos vermelhos entre 8 e 12 horas por dia.
Shollomian, de Sylhet, no Bangladeche, que veio para Portugal com um visto de turista, trabalha numa quinta de frutos vermelhos em São Teotónio. Diz que trabalha entre 8 e 12 horas por dia, começando às 5-6 h da manhã. Foi-lhe dito que receberia uma autorização de residência no prazo de 12 a 14 meses, mas, 24 meses passados, continua à espera. Apesar disso, envia 100 a 400 euros à família sempre que pode e está otimista. “Vim para Portugal há dois anos quando vi anúncios de trabalho em Portugal nas redes sociais. Paguei 3 mil euros por um visto através de uma agência em Deli, mais a passagem aérea. Trabalho a colher frutos vermelhos entre 8 e 12 horas por dia, em condições difíceis. Ganho 50 euros por dia. Temos de colher oito quilos por cada quatro horas. É dificílimo, na quinta faz muito calor, não nos dão água, às vezes sangro do nariz. Não nos dão comida, temos de trazer a nossa. Envio por mês 230-450 euros para a família, no Nepal. Ao fim de dois anos, continuo sem autorização de residência.”
“Há, atualmente, pelo menos, 400 mil pessoas, na sua maioria migrantes indianos e nepaleses, que aguardam renovação das suas autorizações de residência. Encontram-se numa situação muito vulnerável, porque os empregadores aproveitam-se. Não podem perder o emprego, por isso têm de aceitar todas as exigências dos empregadores”, afirma a Dra. Alexandra Pereira, bolseira de pós-doutoramento na Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa, especializada em migração nepalesa, particularmente para Portugal e a Europa.
A situação dos sul-asiáticos é perigosa, pois estão mais à mercê dos traficantes e das máfias que os trazem para Portugal e da exploração dos empregadores. No Centro Comercial da Mouraria, em Lisboa, há muitas agências que continuam a burlar e a lucrar à grande com os recém-chegados e migrantes com documentação insuficiente, convencendo-os a comprar serviços de que não precisam e fazendo-lhes crer que ainda é possível legalizarem a sua situação.
Ao fechar a porta à legalização, o Governo abriu o mercado negro de mão de obra humana. Muitos trabalhadores chegam profundamente endividados, depois de pagarem quantias exorbitantes para virem a Portugal com vistos de turista, de trabalho ou vistos UE expirados. Alberto Matos diz que os migrantes lhe contam que “bem, eu paguei 15 a 20 mil euros, na Índia, para vir trabalhar para Portugal. Eles endividam-se, têm de pagar as dívidas anos a fio, ficam escravos da dívida. As próprias famílias, no país de origem, são obrigadas a pagar a dívida e são ameaçadas pelas máfias locais”.
De acordo com a direção da Migração e Assuntos Internos da Comissão Europeia, “observou-se que a maioria das vítimas confirmadas de tráfico se enquadravam no tráfico de seres humanos para exploração laboral (72,8%); desses, 73,2% no sector agrícola”. As estatísticas são especificamente piores no Alentejo, onde se contaram 51,7% das vítimas confirmadas de tráfico de seres humanos em Portugal entre 2008 e 2021; dessas, 74,5% traficadas para fins de exploração laboral. “Devido à enorme extensão geográfica dos locais onde são colocados para trabalhar, geralmente no interior da região do Alentejo ou no Oeste do país, com condições de acesso difíceis, a deteção pelas autoridades responsáveis pela supervisão das condições de trabalho e permanência em Portugal é difícil.”
As grandes empresas frutícolas estão no âmago da situação. Como afirma Matos, “a Driscoll's controla Odemira inteira. Vendem as patentes e, pelo meio, há uma grande exploração. No fim da linha, dizem: ‘façam o favor de nos darem os frutos vermelhos, nós é que sabemos comercializá-los nos mercados internacionais.’ Costumamos dizer que a região de Odemira é uma espécie de barriga de aluguer da Driscoll’s.” Se há “abuso de hospitalidade”, como clama o primeiro-ministro Montenegro, quem abusa não são os imigrantes, são os empregadores.
Não tarda nada que gente como o Chega venha exigir a deportação de milhares de trabalhadores para os seus “países de origem”. Só que a situação económica e política no Bangladeche e no Nepal é horrenda. O Nepal é um dos países mais pobres do mundo, embora o estilo de vida luxuoso das famílias políticas — roupas de marca, viagens ao estrangeiro e carros de luxo — contraste com a dura realidade que os jovens enfrentam. “Toda a gente se quer ir embora [do Nepal]. Há poucas oportunidades de emprego, crises políticas e económicas constantes; os jovens querem encontrar uma vida melhor, salários mais altos: as pessoas ganham 200 euros por mês.” Acrescem agora perigos reais. No mês passado, o governo do Nepal caiu e houve um golpe militar. A polícia matou 22 pessoas num protesto contra a corrupção.
A situação não é melhor no Bangladeche, país muitíssimo povoado. Há cerca de 37,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar no país. Mais de um quarto das famílias endividam-se para suprir necessidades diárias, incluindo comida. Um inquérito do think tank South Asia Network on Economic Modeling mostrou que 28% das famílias recorrem a empréstimos para sobreviver. Quase duplicou o número médio de empréstimos por família. No ano passado, o exército e a polícia mataram mais de trezentas pessoas envolvidas em protestos contra o governo, até que a então primeira-ministra Hasina fugiu do país, levando milhares de milhões na bagagem.
Assim, as 400 mil pessoas que aguardam a renovação dos vistos não têm maneira de voltar para casa, ao contrário dos muitos portugueses que deixaram o seu país em busca de uma vida melhor e empregos melhores, mas podem regressar. Portugal precisa destes imigrantes, geralmente jovens e industriosos, e da sua mão-de-obra (e das suas receitas fiscais) para contribuir para sustentar quem vive no país. O que é necessário não são controlos de imigração rigorosos, enviesados contra os asiáticos pobres, nem deportações, que muito debilitariam a economia portuguesa. Necessário é que trabalhadores portugueses e imigrantes façam campanha juntos, com os sindicatos, para acabar com a exploração dos trabalhadores migrantes, aumentar o salário mínimo e melhorar as condições de trabalho para todos. Enquanto forem obrigados a trabalhar por salários baixos e em condições precárias, os trabalhadores imigrantes prejudicam a capacidade negocial de todos os trabalhadores em Portugal. É com este “abuso de hospitalidade” que temos de acabar, não aumentá-lo.