Jornal Maio

O papel da escola

O estudante,  ao compreender a teoria por trás da equação, consegue não apenas resolvê-la, mas também esboçar seu gráfico, prever o número de raízes pelo discriminante e aplicar esse conceito para modelar problemas reais, como o lucro máximo de uma empresa.

Lev S. Vigotski, Evald Vasilievich Ilyenkov e Vasili V. Davidov afirmavam que o papel da escola era criar condições propícias para que as crianças aprendessem os conhecimentos teóricos. Essa ideia baseava-se em dois pressupostos. Primeiro, que os conhecimentos empíricos – que constituíam o conteúdo principal do currículo da época – aprendem-se muito melhor fora da escola, pois são produzidos a partir do contacto direto com a realidade. Segundo, que o conhecimento teórico só pode ser aprendido na escola, por depender de uma forma de organização da aprendizagem coletiva que conduz ao desenvolvimento psíquico e subjetivo.

Os conhecimentos empíricos se manifestam na forma de conceitos espontâneos e habilidades específicas (por exemplo, um aluno que decora a tabuada cantando uma música ou que aprende a usar a vírgula copiando o padrão dos textos que lê, sem entender a regra gramatical). Já os conhecimentos teóricos se expressam por meio de conceitos científicos e modos generalizados de ação (habilidades gerais). Os primeiros conhecimentos resultam de abstrações formais, obtidas a partir de aspectos secundários dos objetos e fenômenos em estudo (exemplo: um estudante que resolve a equação de 2º grau apenas aplicando a fórmula de Bhaskara de maneira mecânica, sem compreender a relação da equação com uma parábola ou o significado de seus coeficientes). Os segundos são abstrações substantivas, que resultam da análise dos aspectos essenciais desses mesmos objetos e fenômenos (exemplo: o mesmo estudante,  ao compreender a teoria por trás da equação, consegue não apenas resolvê-la, mas também esboçar seu gráfico, prever o número de raízes pelo discriminante e aplicar esse conceito para modelar problemas reais, como o lucro máximo de uma empresa).

A natureza de cada tipo de conhecimento é definida pelos métodos de apreensão da realidade e de aprendizagem coletiva que se adotam. Os conhecimentos empíricos apoiam-se no método indutivo (do particular para o geral, do concreto para o abstrato). Os conhecimentos teóricos sustentam-se no método dedutivo ou na ascensão do abstrato ao concreto (do geral para o particular). Na escola, o método adotado para o primeiro costuma ser o expositivo ou explicativo-ilustrativo. Para o segundo, são os métodos de quase-pesquisa e de diálogo de estudo.

Por esse motivo, é um engano perigoso acreditar que dominamos os conhecimentos teóricos quando somos capazes de repetir suas definições com precisão. Podemos recitar as leis de Newton, descrever o conceito de “mais-valia” ou explicar a teoria da relatividade com um vocabulário impecável e, ainda assim, não termos verdadeiramente compreendido a essência do que essas palavras representam.

Os conhecimentos teóricos genuínos constituem uma estrutura mental, uma rede de relações, implicações, contextos e aplicações que construímos internamente, integrada fundamentalmente por dois componentes: os conceitos científicos e os modos generalizados de ação.

Pense em aprender a andar de bicicleta. Você pode ler todos os manuais do mundo, decorar o princípio físico do equilíbrio, a função do guiador e a dinâmica das rodas. Pode verbalizar perfeitamente como se faz. Mas só saberá de verdade quando subir na bicicleta e, após tropeços e ajustes, seu corpo e sua mente internalizarem aquele “ponto de equilíbrio”. A teoria se tornou conhecimento na prática; tornou-se uma “sensação” assimilada. O mesmo ocorre com qualquer teoria complexa.

O conhecimento teórico real se manifesta quando:

  1. Conseguimos resolver uma situação de dificuldade ou um problema cuja solução depende da assimilação de novos conceitos científicos e modos generalizados de ação em uma tarefa de natureza coletiva.

  2. Conseguimos explicar a mesma ideia com nossas próprias palavras, usando analogias e metáforas que fazem sentido para nós e para os outros.

  3. Conseguimos relacionar esse conhecimento com outras áreas, visualizando suas conexões com a arte, a política, o cotidiano ou outras disciplinas.

  4. Conseguimos debater as limitações e críticas à teoria, demonstrando que compreendemos não apenas o que ela é, mas também o que ela não é.

Quando nos limitamos à verbalização vazia, caímos no que o educador Paulo Freire chamava de “educação bancária”, na qual o estudante é um mero depositário de frases e fórmulas. Ele pode “devolver” o conteúdo na prova, mas esse conteúdo não o transformou, não ampliou sua visão de mundo.

O verdadeiro conhecimento não habita nas páginas dos livros ou na fluência do discurso. Ele habita na mente que é capaz de manipular, criar, criticar e conectar ideias. A verbalização é a ferramenta poderosa para compartilhar esse conhecimento, mas não é o conhecimento em si. É a ponta visível de um vasto icebergue de compreensão que se esconde sob a superfície do mero falar.

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Roberto Valdés Puentes

Professor de Didática, Universidade Federal de Uberlândia (Brasil)