Quando pimenta no pacote (laboral) alheio é refresco
Quando nos dizem que a flexibilização trará mais investimento externo, o que estão a dizer, no fundo, é que as multinacionais irão de bom grado para um país de brandos costumes e gente com formação que fala inglês sem se importar de receber amendoins a troco de trabalho. Do que podemos, de facto, vir a precisar, é de uma revolução.
Tiago Franco
Fundador e CEO da techLisbon
Há duas formas, relativamente simples, de se perceber a importância da greve geral. A primeira é, obviamente, assistir ao raro acordo entre a UGT e a CGTP. Quando até os sindicatos afectos ao PSD (TSD) se juntam à luta, é porque o ataque é grande. A outra, que também não exige um olho propriamente treinado, é ver as voltas do cata-vento Ventura que passou, em poucas semanas, de opositor a promissor sindicalista. Ainda o Frazão, lá de cima da janela da Assembleia da República, insultava os manifestantes e já o Ventura, percebendo a onda que cativava a opinião pública, se juntava nas críticas ao governo. Às vezes, muito secretamente, desejo que o Andrezito chegue a presidente deste nosso rectângulo. Seria a sentença de morte daquele partido unipessoal que carrega todas as ambições de um homem profundamente frustrado. Para não lhe chamar outra coisa, já que este é um jornal de respeito.
Leitão Amaro foi, para mim, a estrela do dia no papel de Goebbels de Tondela. Excelente na propaganda e na tentativa de despejar uma narrativa para os jornais do dia. Disse ele que o "país escolheu trabalhar" e que a adesão à greve era praticamente residual. Entretanto, as imagens de ruas e avenidas do país, atafulhadas de gente, saltavam de mural em mural. Há uma fotografia exposta no "bunker de Berlim", um museu imperdível, onde se mostra uma montagem de Goebbels transformando uma parada de uns poucos numa manifestação de milhares. Brilhante trabalho de manipulação gráfica, que convenceu uns quantos milhões, feito uns bons 50 anos antes da invenção do Paint pela Microsoft. Leitão Amaro teve apenas o azar de estarmos em 2025, na era dos telefones que fazem tudo.
Antes já tinha dito, para quem o quisesse ouvir, que o novo pacote laboral não teria impacto na função pública, uma vez que estes trabalhadores estão protegidos pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. O regime geral do código do trabalho, segundo o ministro da Presidência, é que sofreria o impacto. Esta conversa tinha dois objectivos. Desde logo, desmotivar a função pública no seu protesto. Como se as lutas laborais não se fizessem de solidariedade entre mais e menos afectados. Como se o colectivo não fosse sempre mais forte quanto maior a sua expressão. E depois, a parte menos conhecida da opinião pública, como nos explicou Rita Garcia Pereira (notícia CNN), advogada especialista em direito do trabalho, já existem muitos trabalhadores na dependência do Estado que têm contratos individuais de trabalho e, portanto, de natureza privada, directamente afectados pelo novo pacote laboral.
Um dos grandes problemas dos nossos governantes é a bolha em que vivem e a distância entre as suas vidas e a realidade dos Portugueses. A crise da habitação por exemplo, que afecta boa parte da população e resulta em despejos diários, está a ser enfrentada por um primeiro-ministro que tem 55 imóveis, uma ministra do Trabalho, professora universitária, com um património superior a 5 milhões de euros e um ministro da Presidência, o nosso Goebbels de Tondela, que investiu 1,34 milhões de euros numa casa em Lisboa e que, por acaso, recebeu uns benefícios no IMI (notícia CM). Como é que esta gente enriquece com os salários declarados? E pior: como é que podem perceber as dificuldades do trânsito se circulam em via privada e sempre livre?
Com o pacote laboral o problema é essencialmente o mesmo. Discute-se a flexibilização como uma arma para o aumento da produtividade. Defende-se o fim dos sindicatos para ter menos entraves ao progresso. Apresenta-se o trabalho temporário como um benefício da rotatividade laboral. E no fim, para que ninguém duvide, explicam-nos que este é o caminho para sermos a próxima Alemanha, Suécia, Dinamarca ou Bélgica. É a aposta total na desinformação, na tentativa de meter trabalhadores contra trabalhadores, pobres contra pobres. Na Suécia, por exemplo, onde trabalhei durante 20 anos, a taxa de sindicalização anda perto dos 70% e praticamente 1/3 da força laboral está no sector público. A carga fiscal é elevadíssima e o lucro é fortemente taxado. Que o diga o já falecido fundador do IKEA, que se mudou para a Suíça, esse bastião de produtividade com o trabalho alheio e sempre protetor das fortunas.
Em Portugal as reformas laborais são sempre, mas sempre, feitas pelo lado do trabalhador. É preciso produzir mais, oferecer horas ao patronato, aceitar o despedimento sem justa causa, adiar a vida à espera de um contrato sem termo. O que não é preciso, em momento algum, é exigir que a riqueza criada pelos trabalhadores vá menos para os accionistas e mais para os bolsos de quem trabalha. Ou que a carga fiscal absurda que afecta os Portugueses se converta em creches públicas, atendimento decente na saúde ou transportes públicos que funcionem. No fundo, tenta o Governo e toda a direita em geral convencer uma legião de pobres de que o problema são eles, que trabalham pouco e que os 40% que estão no limiar da miséria antes das transferências sociais devem trabalhar ainda mais porque há uma elite política e empresarial que precisa de mais lucro. Até porque, aqui e ali, há um BES bem sólido que não se paga sozinho ou uns arranjos entre governantes e construtoras que não se fazem sem um saco azul profundo.
Quando nos dizem que a flexibilização trará mais investimento externo o que estão a dizer, no fundo, é que as multinacionais irão de bom grado para um país de brandos costumes, gente com formação que fala inglês se não se importarem de receber amendoins a troco de trabalho. A novidade é que o "investimento externo" já está em Portugal. Não faltam multinacionais que descobriram o filão português e do quão longe conseguem chegar com 1000 euros para oferecer. Na minha área, neste preciso momento, Portugal é visto como uma opção a considerar se comparado com o investimento no Vietname. No Vietname, meus amigos! Foi aqui que chegámos ao fim de 40 anos na União Europeia.
Temos mais auto-estradas, muitos hotéis de charme e tascas gourmet. Mas continuamos pobres, governados por gente que resume o CV a um cartão partidário, sem um dia de trabalho no mundo real e que enriquece enquanto nos convence de que o problema somos nós.
Talvez Leitão Amaro e Montenegro tenham razão quando dizem que o país não precisa de greves. Talvez não. Pelo aspecto da coisa, o que podemos, de facto, vir a precisar, é de uma revolução.
*O autor escreve segundo a norma anterior ao Acordo Ortográfico adoptado em 2009.