Jornal Maio

Sangue, suor e lágrimas do trabalho escravo: eis do que é feita a agricultura intensiva das azeitonas, das nozes e das amêndoas

Quem são, afinal, os reais beneficiários do trabalho escravo nos campos do Alentejo? Quem são e a que título os donos das herdades? Quem contrata, quem vigia e quem explora os trabalhadores imigrantes? Leiam aqui o artigo de Antonio Garcia Pereira.

António Garcia Pereira

Fomos há dias confrontados com a notícia da detenção, para além de um certo número de civis, de dez guardas da GNR e de um chefe da PSP, por, em troca de 200 euros durante a semana e de 400 ao fim-de-semana, inclusive nas horas de serviço e quando estavam fardados e em viaturas policiais, vigiarem, ameaçarem, insultarem, até agredirem, trabalhadores imigrantes, sobretudo timorenses, indianos e do Bangladesh, escravizados em explorações agrícolas intensivas da zona de Beja (designadamente em Cabeça Gorda) e a receber, depois de os seus “patrões” lhes ficarem com o resto a título de habitação e transporte, cerca de 80 euros ou menos por mês.

Conforme foi igualmente noticiado, este grupo de guardas seria chefiado por um tenente da GNR, comandante do Destacamento de Intervenção (a “tropa de choque”) da GNR e por um chefe da PSP, de baixa há 10 meses. Contava ainda com a participação dum sargento da GNR, que vive com uma procuradora da República, que foi até há pouco tempo comandante de um posto no Alentejo, entretanto transferido para o Norte do país, tendo as suas casas, em Castro Verde e em Gondomar, sido objecto de buscas. Como mais de quarenta outros locais (designadamente em Baleizão, Beringel, Santa Clara de Loredo e Penedo Gordo), entre os quais o Café Sol Nascente, em Cabeça Gorda, e também um antigo lar, ambos usados para “depósito”, em condições absolutamente infra-humanas, de dezenas e dezenas de imigrantes, pagando cada um exorbitâncias como a de 100 euros mensais por cada miserável cama. 

Logo depois, surgiu a espantosa notícia de que todos aqueles onze agentes policiais tinham sido afinal mandados em liberdade pela juíza de instrução porque o Ministério Público “não sabia” ou se tinha “esquecido” — acredite quem quiser — de que as escutas só podem constituir validamente meio de prova se acompanhadas das respectivas transcrições, as quais não haviam sido realizadas ou, pelo menos, não haviam sido juntas aos autos. E, como nem as corporações respectivas — PSP e GNR — nem a Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI) promoveram a respectiva suspensão preventiva, os ditos onze guardas puderam tranquilamente retomar funções e circular livremente pelos mesmos espaços das respectivas vítimas!?

Ora a primeira pergunta, incontornável, mas a que, obviamente e como é já habitual, nem o Ministério Público nem o procurador-geral da República respondem ou querem responder, é esta: como foi possível uma tal actuação do Ministério Público e que medidas foram, afinal, tomadas relativamente ao responsável por ela? Tudo isto, para mais, quando também se sabe que, como já referido, o chefe da PSP vive com uma procuradora da República e que um dos líderes da organização mafiosa se gabava de ter o mesmo o Ministério Público na mão.

Mas há outras perguntas relativamente às quais todos nós, cidadãos, não podemos deixar de exigir, e com toda a firmeza, todas as respostas e o apuramento integral de todas as responsabilidades.

Assim, e desde logo, alguém pode acreditar que, naquela zona, como noutras (designadamente na área de Évora), não se soubesse o que estava a acontecer e que, designadamente, os escravos imigrantes eram maltratados por polícias, inclusive fardados, nas respectivas horas de serviço? Porque é que ninguém denunciou então a situação? Desde quando durava, e impunemente, este escândalo esclavagista? E é ou não verdade que — após a operação da Polícia Judiciária e, tal como se referiu, por exemplo, numa reportagem da SIC — tudo estará na mesma, com os imigrantes a trabalharem nas mesmíssimas condições de sobre-exploração ou a ficarem abandonados pelas ruas de vilas e cidades e a viverem dez em cada quarto, em condições miseráveis, e a pagarem os tais 100 euros de renda?

Sendo certo que, desde há muitos anos, até organizações religiosas como a Cáritas, mas também, e sobretudo, associações como a Solidariedade Imigrante, vêm denunciando as condições desumanas em que sobrevivem e são sobre-explorados os trabalhadores imigrantes daquelas zonas, e mesmo após a pública denúncia, há uns anos atrás, do escândalo da escravização na zona de Odemira, que medidas foram adoptadas relativamente a esta criminosa escravização por todas e cada uma das entidades públicas, do Governo às câmaras municipais e juntas de freguesia, passando, por exemplo, pela Autoridade para as Condições de Trabalho?

Mas, sobretudo, quais são e a quem efectivamente pertencem as empresas de trabalho temporário que servem para aparecer formalmente como os patrões e amos daqueles escravos? E, mais ainda, de quem são e como funcionam estas duas propriedades, e todas as outras, seja no litoral, seja no interior alentejano, onde se verificava, e verifica, este trabalho escravo? Estas, ou algumas delas, são, ou eram, de grandes latifundiários, ligados à CAP, e também apoiantes e financiadores do Chega, e que, alguns até depois de as terem falido, as venderam ou arrendaram a grandes potentados económicos, designadamente estrangeiros? E que tipo de empresas, verdadeiramente, as exploram, e quem são, afinal, os seus reais beneficiários? E ainda, e já agora, de onde vêm, como conseguem e a que preço — ou será que gratuitamente? — dispor das enormes quantidades de água da barragem do Alqueva que tais explorações agrícolas necessariamente exigem?

Mais ainda, aquilo que se vem passando com a entidade gestora do Alqueva, a EDIA, desde a nomeação da sua administração, em 2012, pela ministra Assunção Cristas — e cujo presidente, José Pedro Salema, vem até aos dias de hoje — é ou não um autêntico escândalo? É que aquilo que é referenciado, ainda que a medo e quase em segredo, é que, após a primeira fase dos regadios, em que a distribuição da água da barragem do Alqueva foi feita nos perímetros definidos e autorizados de acordo com as normas, designadamente ambientais, e com os respectivos estudos de impacto ambiental (EIA), foi-se generalizando, sem sequer esses mesmos estudos e sob a capa dos chamados “fornecimentos precários” (legalmente previstos somente para curtos períodos e para pequenos proprietários), o abastecimento, mesmo fora dos respectivos requisitos legais, a grandes e mesmos gigantes propriedades da ordem dos 200 e 300 hectares. 

Deste modo, apesar de estarem marcados a vermelho nos próprios mapas da EDIA – o que significa não terem direito a regadio –, é amplamente conhecido que tais enormes propriedades continuam a ser indevidamente abastecidas com a água do Alqueva, para mais induzindo assim uma elevação dos respectivos preços de mercado na ordem dos 1.000%. Deste modo, um terreno que valia, por exemplo, x, uma vez assegurado o respectivo regadio, terá passado a valer “10x”! 

De par com esta nunca devidamente investigada utilização de recursos públicos (da EDIA) para fins e lucros privados, mesmo uma instituição com alegados fins sociais como a Fundação Eugénio de Almeida passou a participar neste mundo de negócios, arrendando a empresas de exploração agrícola diversas das grandes propriedades de que é dona no Alentejo. 

Significativo é também o que se vem passando com a família Ortigão Costa, de que um dos filhos, Jorge, é um dos maiores financiadores e apoiantes do Chega, e outro, João, acumula um património de 325 milhões de euros e é dono da Sugal, um gigante (o 3º maior do mundo!) da produção e transformação do tomate e que factura cerca de 500 milhões de euros anualmente. 

 


São, ou eram, de grandes latifundiários, da CAP, e também apoiantes e financiadores do Chega, que, alguns até depois de as terem falido, as venderam ou arrendaram a grandes potentados económicos, designadamente estrangeiros.



Ora o grupo agroindustrial da mesma família, a sociedade gestora de participações sociais SOGEPOC, criou, em 20/9/2018 e com um capital social de 3,5 milhões de euros, a NOGAM-Unipessoal, Lda, a qual detém gigantescas explorações situadas nos perímetros de rega do Alqueva. Desde logo na Herdade das Atafonas, com entrada, vedada e guardada, ao quilómetro 5 do Caminho Municipal 1184, na Torre das Coelheiras, Évora, e que, como consta de tabuletas ali colocadas, será propriedade da referida Fundação Eugénio de Almeida — são 615 hectares de nogueiras e 170 de amendoeiras, num total de 785 hectares! E, em 18/6/21, a mesma SOGEPOC inaugurou em Évora, com direito a presença e elogiosos discursos do presidente da Câmara e dos ministros da Economia e da Agricultura, uma grande fábrica de processamento de nozes, com uma previsão de facturação da ordem dos 25 milhões de euros. 

Outra grande propriedade deste tipo é a igualmente gigantesca Herdade das Amêndoas Doces, formalmente de José Leal da Costa (o proprietário da Amieira Marina, a primeira marina do Alqueva), mas constando que intensamente apoiada e financiada por fundos americanos, situada em propriedade arrendada à Fundação Eugénio de Almeida, na Ervideira, em zona onde oficialmente não há regadio, mas todas as evidências apontam para a existência de água em abundância, e onde até um lagar foi construído. No enorme pomar de amendoeiras da herdade são utilizados trabalhadores imigrantes recolhidos na região de Évora e que todos os dias são levados e trazidos por inúmeras carrinhas (brancas com uma risca azul) que toda a região conhece e sabe a que se destinam. Por seu turno, as populações que residem nas proximidades têm-se queixado frequentemente de práticas perniciosas para a saúde pública, como a aplicação de óxido de cálcio (cal viva) nos solos e a pulverização das árvores com um produto meloso que atrai toda a espécie de insectos. 

Outras propriedades do mesmo tipo (com regadio) são a Herdade da Torre de São Brissos e a Herdade do Peral – esta última por arrendamento à Fundação Eugénio de Almeida e aos herdeiros de Américo Amorim – , ambas da titularidade do grupo espanhol De Prado, outro potentado que entrou em Portugal, dedicando-se inicialmente às oliveiras de utilização intensiva (que produzem, no máximo, durante uns 7 a 10 anos) e que passou depois para o ainda mais rentável negócio da produção intensiva de amêndoas. 

Este grupo espanhol actua, naquelas e noutras herdades, que em conjunto representam milhares e milhares de hectares, através de diversas (e aparentemente de pequena dimensão) sociedades unipessoais ou por quotas. Uma dessas empresas é a Olieca - Sociedade Agrícola Lda, que opera, com a mesma lógica das restantes, na herdade Monte dos Frades, situada no Baleizão (outra das localidades onde, como já referido, foram efectuadas buscas policiais no âmbito da Operação Safra Justa).

Outra característica desta forma de sobre-exploração de trabalhadores imigrantes é a de que estes normalmente não são angariados ou contratados directamente pelos donos das explorações onde trabalham – precisamente porque desta forma tais donos se descartam de quaisquer responsabilidades no campo laboral –, mas sim por empresas de fornecimento de mão de obra ou de trabalho temporário (ETTs), muitas delas nem sequer devidamente registadas e antes totalmente ilegais, e que assim conseguem esmagar por completo os custos salariais.

Com as dificuldades e crises das explorações destes produtos, em particular das nozes e das amêndoas, noutras regiões do mundo, como a Califórnia e a África do Sul, o interior alentejano tornou-se uma área mais que privilegiada para investimentos estrangeiros (em particular, americanos e espanhóis), quase sempre constituindo ou utilizando pequenas empresas criadas para o efeito, assegurando, por compra ou, mais correntemente, por arrendamento, a exploração de propriedades formalmente distintas, mas que, no seu conjunto, representam extensões enormes e com acesso, muitas vezes à margem da lei, a grandes quantidades de água. E que utilizam, contratada por empresas “negreiras” de vão de escada, mão de obra imigrante, frequente e propositadamente mantida ilegal e, por isso mesmo, sem direitos, com salários baixíssimos e vivendo e trabalhando em condições absolutamente desumanas, sujeita às mais bárbaras arbitrariedades. 

E, para procurar ocultar esta realidade, muitas destas propriedades estão fortemente vedadas e fechadas, e quem delas se aproxime é logo seguido e confrontado, de forma ameaçadora, por “guardas”, deslocando-se em carrinhas. E sobre os exactos contornos de toda esta lucrativa actividade recai, um pouco por toda a parte, um extenso manto de silêncio, feito de um misto tenebroso de cumplicidades e de receios.

A verdade nua e crua é, porém, que, com este negócio de sangue, suor e lágrimas – viabilizado e até incentivado pela inacção ou até a cumplicidade activa das entidades públicas (Governo, autarquias, autoridades policiais, Segurança Social, Finanças, EDIA, Autoridade para as Condições do Trabalho-ACT) — lucram os proprietários e gestores que arrendam as herdades e que, mediante o acesso — ainda que ilegal e à custa de recursos públicos — ao regadio, as hipervalorizam; lucram os senhorios sem escrúpulos que arrendam os “depósitos” de trabalhadores; lucram os donos das empresas de angariação de mão de obra, bem recompensados pelo baixíssimo custo desta. Mas, sobretudo e acima de tudo, lucram os empresários agrícolas “de sucesso” e os fundos e grandes interesses económicos que os financiam e sustentam, os quais, beneficiando de todas estas vantagens e, em particular, dos baixíssimos custos de produção do trabalho escravo e atribuindo aos seus intermediários e capatazes as tarefas mais sujas de todo este processo, acumulam astronómicos (e “limpos de imagem”) ganhos. 

E é precisamente por isso que se tem procurado impor o tal perverso manto de silêncio sobre quem são afinal os principais beneficiários do lado mais negro e oculto de toda esta miserável história. Mas é também por isso que esse manto tem agora de ser decididamente rasgado e destruído, com a denúncia, investigação, responsabilização e sancionamento de todos, sem excepção, os reais beneficiários deste esclavagista negócio.

 

*O autor escreve segundo a norma anterior ao Acordo Ortográfico adoptado em 2009.