No Alqueva, o rei vai nu, à vista de todos, à vista de ninguém
Hoje, são meia dúzia de grupos económicos, fundos financeiros americanos e espanhóis, essencialmente, que determinam o que se rega e onde, no Alqueva. Atuam como verdadeiras máfias, e a impunidade destas empresas mantém-se, inclusive no domínio ambiental, onde acontecem verdadeiros crimes. Com estas empresas predadoras de recursos económicos e naturais vem também o tráfico humano e a indigência que é promovida por este tipo de “agricultura”.
Cristina Morais
Reza o conto de Hans Christian Andersen que dois vigaristas prometem ao rei um fato maravilhoso, invisível aos olhos dos tolos. Receando parecer ignorante, o rei e toda a corte fingem ver o tecido inexistente. O rumor cresce, os alfaiates fazem de conta que trabalham, e o monarca desfila com a “roupa nova” perante a cidade, enquanto todos, presos ao medo e à conivência, elogiam o traje que ninguém vê. No auge do cortejo, uma criança — sem medo do ridículo — exclama: “O rei vai nu!”
A evidência rompe o feitiço social: a multidão percebe a farsa, mas o rei, envergonhado, continua a caminhar.
O conto expõe o conformismo, a manipulação do poder e a autocensura coletiva, mostrando como uma verdade simples, vinda de quem nada tem a perder, é capaz de desfazer unanimidades de fachada.
No Alqueva, desde 2012, querem fazer-nos de tolos e parvos. Quem?
Está na altura de a criança gritar: “O rei vai nu!”
O Alentejo é conhecido por ser terra de grandes e vastas propriedades. É também conhecido por ser um território despovoado, pobre, pouco interessante politicamente.
O empreendimento do Alqueva foi planeado e construído para inverter o despovoamento e promover o desenvolvimento socioeconómico do território através de uma gestão sustentada do recurso “água”.
Os Censos 2021 comprovam que o principal objetivo do Alqueva falhou; a erosão demográfica continuou e os resultados económicos na região são quase nulos. Não, não é verdade que Alqueva já se pagou. Os estudos que são divulgados não passam de um tecido supostamente invisível para os tolos. Fazem-se as contas aos hectares regados, à produção estimada de cada cultura, ao preço do azeite e amêndoa, e Alqueva é um sucesso nacional. Nada mais falso.
Dada a gestão desgovernada do regadio, com objetivos muito pouco claros, os fins múltiplos de Alqueva estão em risco, o que terá consequências graves, porque não estão a ser cumpridos os grandes desígnios com os quais o Estado português se comprometeu com a União Europeia: constituir uma reserva estratégica de água e garantir o abastecimento público de água às populações, produzir energia hidroelétrica, desenvolver a agricultura e promover outras atividades, como o turismo.
Atualmente, Alqueva é um empreendimento agrícola; a tutela mantém-se há anos no Ministério da Agricultura. O regadio tornou-se hoje o seu único objetivo e os fins múltiplos do empreendimento desapareceram — ou talvez só tenham existido na “alfaiataria” dos tecidos mágicos, para captar financiamento comunitário.
Alqueva rega hoje mais de 200 mil hectares. A estes consumos de água acrescem os milhares de hectares regados em Espanha a partir de captações ilegais. A área regada que é conhecida oficialmente é manifestamente inferior à real; é por isso que hoje sabemos que a água de Alqueva já não chega para todas as necessidades. O Governo quer agora fazer um transvase, para que esta água vá regar os abacates no Algarve — sabemos, todos, de quem.
Foram-se os anéis e também os dedos. Alqueva, com a atual gestão da água que não faz, deixou de ser a reserva estratégica, entregou a exploração da central hidroelétrica à EDP a troco de uma renda e limita-se a construir regadio a pedido dos grandes grupos do proclamado agronegócio. A Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva, S.A. (EDIA) deixou de exercer o mandato do Estado, tendo perdido a capacidade de gestão dos bens públicos a ela consignados.
Hoje, são meia dúzia de grupos económicos, fundos financeiros americanos e espanhóis, essencialmente, que determinam o que se rega e onde no Alqueva. Atuam como verdadeiras máfias, e a impunidade destas empresas mantém-se, inclusive no domínio ambiental, onde acontecem verdadeiros crimes, que determinam milhares de hectares sem qualquer capacidade produtiva dos solos, a contaminação destes e da água, a destruição de ribeiras transformadas em valas de drenagem, a progressão de espécies invasoras e o abate criminoso de sobreiros e azinheiras com injeções de alumínio.
Com estas empresas predadoras de recursos económicos e naturais vem também o tráfico humano e a indigência que é promovida por este tipo de “agricultura”. Alqueva aproxima-se a passos largos de ser a Almeria portuguesa; e nada acontece. Alguns dias após a operação “Safra Justa”, tudo continua na mesma. Devem ser muito poucas as pessoas que, na região, não sabem como os marginais atuam. Beja e Évora são cidades pequenas, as aldeias e vilas ainda mais, e todos conhecem o negócio, alguns lucram com as camas quentes, outros com a guardaria dos novos escravos, outros ainda com papéis falsos e supostas empresas de um euro de capital social, que fazem circular o dinheiro sujo. Mas esta lama nojenta não se fica pelos polícias, donos de cafés e casas nas aldeias e cidades, transportadores de escravos ou os outros todos. Quem os alimenta são os terratenentes e os rendeiros dos dízimos. Quando as investigações chegarem ao cimo do icebergue e a justiça atuar, aí já não será necessário a criança gritar “o rei vai nu!”