Carlos Fernández Liria
“Ensinar é uma relação, e as crianças e jovens foram convencidos a não aprender.”
Entrevista de Raquel Varela e Roberto Leher
Entrevistámos Carlos Fernández Liria¹, um dos mais originais e instigantes pensadores da educação. Nesta entrevista ataca a noção de competências, apresentada com uma roupagem de esquerda que considera “delirante”, questiona uma escola esvaziada de matérias científicas, recorda como tudo isto visa desqualificar os estudantes (tirar-lhes a possibilidade de uma profissão) para servirem de força de trabalho precária, flexível e alienada que configura a sociedade capitalista atual. Defende que a escola não é para alimentar prédicas morais, seja de cidadania, seja de empreendedorismo, como querem os intelectuais do capital. Preconiza que os professores voltem a lutar pela sua liberdade académica e de ensino, afirmando a sua condição de intelectuais organizadores da ciência, da arte e da cultura, em todos os graus - contra os governos, as empresas, a OCDE, o Banco Mundial e a UNESCO, que fazem da escola um laboratório para a adaptação dos jovens ao mercado, destruindo a profissão de professor. É um defensor radical de uma escola transformadora, igualitária e democrática, pública, gratuita e universal, realmente comprometida com o rigor sistemático dos processos de ensino e aprendizagem capazes de assegurar a formação histórico-crítica das novas gerações.
Raquel Varela (RV) Carlos, no livro Escuela y Libertad (Ed. Akal, 2024)², defendes que a escola não é uma creche, ou um espaço de assistência social, pois deveria ser um local de ensino e de processos de aprendizagem. Dizes também que a escola não deve ser de esquerda ou de direita, deve ser uma escola pública. Em Portugal e em muitos países a esquerda, que se autodenomina progressista, defende, por exemplo, o ensino da cidadania, como se as lutas históricas pelos direitos civis, políticos e sociais não fossem preocupações sistemáticas da história, da sociologia e da filosofia, disciplinas que perdem espaço no currículo para o dito ensino de cidadania. A extrema-direita, por sua vez, condena a disciplina de cidadania, estabelecendo assim uma polémica superficial que apaga o esvaziamento das referidas disciplinas de História, Sociologia e Filosofia. Como discute o livro essas visões?
Carlos F. Liria (CFL) Esse último livro é uma tentativa de criar uma ferramenta para que a esquerda possa pensar num programa de educação adequado. A ideia veio da nossa intervenção no Grupo de Educação da coligação Sumar. Havia um grupo de educação em que participámos e ficámos horrorizados porque eles estavam a tentar desenvolver um programa de esquerda... criando uma escola de esquerda! Tentámos fazer entender que a escola pública era uma invenção justamente das classes trabalhadoras que tinha de ser defendida com unhas e dentes, mas que não havia necessidade de defender que a escola era de esquerda, o que a esquerda tem de fazer é defender a escola pública e defender a pluralidade que caracteriza essa escola pública. Porque se a esquerda cai na armadilha de tentar defender uma escola de esquerda, na verdade está a optar por um modelo que é muito bom para a direita, porque se a esquerda cria escolas de esquerda, a direita cria escolas de direita. E então o Opus Dei pode criar uma escola Opus Dei, e as Testemunhas de Jeová também.
E este é o modelo que em Espanha é denominado de “escola concertada”. Esta escola tem gestão privada, mas é financiada pelo Estado. A esquerda deve defender um modelo de escola pública contra a escola concertada, quer seja de esquerda quer de direita. (...) Então, se alguém tiver pais do Opus Dei, eles vão pôr os filhos numa escola do Opus com segregação sexual, fazendo-nos acreditar que o mundo inteiro é o do Opus Dei, de tal forma que o filho vai pensar com os do Opus Dei, vai ter professores do Opus Dei e colegas do Opus Dei, e isso é trancar as crianças numa prisão ideológica, também totalitária, (...) e os jovens confundiram completamente os limites do universo com os limites do Opus Dei. (...) O que pretendemos com a escola pública é proteger o direito das crianças de se libertarem dos pais para se libertarem da ditadura ideológica sectária da doutrinação familiar que recebem na sua família, e esse direito só pode ser garantido pela escola pública.
“A escola pública [é] uma invenção (..) das classes trabalhadoras que tem de ser defendida com unhas e dentes”. (...) A esquerda tem de (...) defender a escola pública e defender a pluralidade que caracteriza essa escola pública”.
RV: Nos teus livros, incluindo no teu debate sobre o ensino da filosofia, vais um pouco mais longe e defendes que existe, por assim dizer, um conhecimento, um esclarecimento e uma compreensão universal – o ensino como herança universal do Iluminismo referenciada na ideia de universalismo. Como dizes, também vai muito contra o pensamento que permaneceu dominante na esquerda parlamentar, que é a ideia do isolamento das identidades, de fragmentação dos sujeitos sociais, como se a sociedade fosse um agregado de indivíduos cada qual com os seus conhecimentos particulares.
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Nunca os trabalhadores precisaram tanto de uma voz independente.
Roberto Leher (RL): Carlos, falas de uma escola desinteressada, que justamente não é uma escola doutrinária. A tua reflexão aproxima-se da elaboração de Gramsci sobre a escola desinteressada?
CFL: Absolutamente. Acredito que o principal direito [do] cidadão é saber que existem coisas objetivas, que existe um horizonte de objetividade. É claro que ninguém tem a verdade nas mãos. Ninguém recebeu uma iluminação divina. Mas no espaço público as coisas são discutidas – discutidas e contra-argumentadas. E há um efeito de objetividade. Nem tudo é relativo, esta coisa de tudo ser relativo é uma ideologia pós-moderna que se adequa à flexibilidade neoliberal.
Sempre digo isto aos meus alunos: quando Einstein escreveu no quadro a sua famosa fórmula: E = mc², ou seja, a energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado, um estudante levantou a mão e disse: “E para que serve isso? Será usado?” E Einstein teria respondido: “Espero que não. Mas é lindo!”
Depois serviu um propósito e também uma atrocidade, para construir bombas atómicas. Mas em princípio, a ciência tem de se propor conhecer para saber conhecer de forma desinteressada. Como afirmaste, Roberto, como dizia o Gramsci.
Existe uma objetividade científica a que os jovens na escola têm direito. Conhecimento desinteressado. Não é a definição de conhecimento filosófico, é a definição filosófica do conhecimento em geral. [Defendemos que] O conhecimento teórico em geral [possa ser] desinteressado.
“Se o professor não for um intelectual capaz de sistematizar o conhecimento científico e cultural da sua disciplina para ensiná-la os processos de ensino e aprendizagem desfazem-se.”
RV: Em 2018, a lei das Aprendizagem Essenciais³, em Portugal, que é a mesma aplicada em vários países pela influência da OCDE, UE, etc. de reduzir o currículo, fragmentou e descaracterizou o currículo da História e, em contrapartida, ofereceu roteiros alienantes sobre como os professores devem ensinar que as crianças não sejam racistas, que promovam a tolerância e a boa convivência entre os povos. Eu digo aos meus alunos: “Então não vamos ensinar o nazismo e o imperialismo, porque eles não são ‘a boa convivência entre os povos’”? É como mudar o ensino da História para uma pregação moral. Uma missa alegadamente progressista. Eu deveria ensinar a história do colonialismo e do imperialismo, contextualizando que a biologia, e a sua pretensão dita científica sobre as diferenças entre o cérebro negro e o cérebro branco, eram funcionais para o imperialismo colonizar os povos? Não, devo ensinar aos alunos que devem ser boas pessoas, tolerantes, e não devem ser racistas, como se o racismo pudesse ser superado por prédicas morais, uma realidade desvinculada do imperialismo.
CFL: Totalmente verdade. A mesma coisa aconteceu connosco aqui. Começaram a surgir essas disciplinas de educação para a cidadania. Dizem que a função da escola é formar bons cidadãos. Eu acredito que esse não é o papel da escola. A escola tem de assegurar o conhecimento, e isso tem efeito na formação de bons cidadãos. Somos professores de escolas ou universidades, não somos pregadores. Deixamos isso para as seitas religiosas ou para as comunidades que de uma forma ou de outra têm as suas receitas éticas. Nós, professores de Matemática, acho que temos de explicar matemática, e isso é muito formativo. Isso é muito bom para que haja bons cidadãos. Um professor de História tem de explicar a história. Um professor de Filosofia tem de explicar filosofia. Cada professor não precisa de transformar a sua matéria em algum tipo de doutrinação ou formação moral para os seus alunos. Essa formação fazem-na as seitas religiosas ou as famílias em casa. Na escola, os alunos saberão que existe um horizonte desinteressado, uma objetividade que está acima dos diferentes relativismos, dos diferentes pontos de vista familiares, sectários, religiosos, etc., etc. Não, não devemos perder de vista a ligação entre escola pública e objetividade.
Esses assuntos, na verdade, são uma armadilha fatal. A coisa começou com a formação de bons cidadãos e finalmente acabaram por ser substituídos por assuntos que, na verdade, o que querem é formar bons clientes e bons empresários, bons empreendedores. A disciplina de Educação para a Cidadania, em Espanha, quando a direita começou a governar, foi substituída pela formação do espírito empreendedor, o empreendedorismo.
Ou seja, não se trata mais de formar cidadãos conhecedores dos seus direitos, mas empreendedores, ser flexível na selva do mercado de trabalho. Trata-se de formar um capital humano funcional para as necessidades do mercado empresarial – um empreendedor é um empresário de si mesmo, mas na verdade não passa de um trabalhador que perdeu os seus direitos. É um trabalhador que não tem sindicato ou associação profissional por trás dele, nem um acordo coletivo que o proteja. E, para isso, tem de ter uma vida muito flexível. Se uma empresa precisa de ti do outro lado do mundo, tens de poder ir para o outro lado do mundo, independentemente de teres certos direitos como cidadão – esses direitos desaparecem. Simplesmente tornas-te material humano flexível ao serviço das necessidades empresariais, que, aliás, são necessidades empresariais completamente malucas – é um mercado de trabalho suicida. Um mercado de trabalho descartável que transforma a escola pública numa escola descartável por meio dessas disciplinas.
“As plataformas tecnológicas das corporações estruturam algoritmos que aprisionam as crianças em bolhas definidas pelas ideologias do capital. De tal forma que deixam de ter contacto com os outros alunos e com os professores!”
RV: A filha dos reis do Estado Espanhol, Leonor, foi estudar numa escola de luxo em Inglaterra que proibia a utilização de telemóvel ou iPad, mesmo nos recreios, e o currículo era unificado até ao 12º ano, com maior peso nas ciências exatas, humanas e sociais no turno da manhã e à tarde com ensino experimental, artes, desporto, teatro, envolvimento comunitário. Ao fim de três anos tinha de fazer uma prova de redação filosófica crítica. As classes dominantes colocaram os seus filhos neste tipo de escolas e, ao mesmo tempo, inundam as escolas públicas de iPads e telemóveis, onde as crianças estão a ser preparadas para operar máquinas.
CFL: Em Espanha vivemos isso de uma forma assustadora. O mais recente é um tal DUA (Desenho Universal para a Aprendizagem), um sistema de ensino desenvolvido pela Fundação Bill Gates. Não é por acaso que a Microsoft tem muito a ver com isso. É a conceção mais pós-moderna e neoliberal da escola que se possa imaginar. Cada aluno, dizem, é um mundo diferente, não precisa de haver atenção à diversidade, porque somos todos diferentes. A diversidade é a norma. Não há nada comum e, portanto, o ideal seria que cada aluno estivesse diante de um computador com um algoritmo que se adaptava às suas necessidades especiais e à sua mentalidade [mas que em rigor moldam o perfil do estudante encerrando-o] numa bolha e separado do resto da turma.
O papel do professor seria apenas andar entre os alunos para ver se eles têm algum problema com o computador. Ou seja, o professor efetivamente desaparece. Não consigo conceber coisa mais distópica e louca. Os pais desesperados, porque os nossos filhos não param de consumir Instagram e TikTok e chegam à escola e ficam trancados numa bolha de computador em frente de um ecrã?! De tal forma que deixam de ter contacto com os outros alunos e com os professores!
Há sempre novos “métodos” pedagógicos, tentando inventar a pólvora. Porém, o que dizem os melhores estudos e pesquisas sobre o que funciona melhor na escola? Que o melhor é um professor que explica o conhecimento interagindo com os seus alunos, ou seja, o que costuma ser chamado uma exposição, um professor ao mesmo tempo dialoga com os alunos sobre os conteúdos que está a ensinar (...) e sem telemóvel nem computador. Gastamos uma fortuna para substituir as escolas, mas não têm nada de especial: com um quadro negro e um pedaço de giz, um professor pode ser suficiente e mais que suficiente para ensinar matemática, história, filosofia ou línguas.
Entretanto, as elites mandam os seus filhos e filhas para escolas que funcionam à moda antiga, porque sabem perfeitamente que são boas. Isto porque, naturalmente, as escolas privadas [voltadas para as elites] não obedeceram às ordens do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio.
RL: Na OCDE e também no Banco Mundial, é possível observar um núcleo axial de construção da política pedagógica, que é o direito à aprendizagem. Mas é possível aprender sem ensinar, sem professores, sem orientação diretiva intencional ou instrução? Outro ponto é a existência de think tanks, como o Banco Mundial, cujas ideias sobre a formação de professores e a natureza do trabalho docente chegam à universidade, difundindo a noção de que os professores não precisam de realizar um trabalho intelectual de organização da cultura, de organização intencional da cultura, de diálogo crítico com os seus alunos.
CFL: Concordo plenamente, Roberto. No livro sobre escola ou barbárie analisámos os planos que foram feitos pelo OCDE e pelo Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio e da UNESCO desde a década de 1970, no nível primário, secundário e universitário (Bolonha por exemplo). Os documentos mais importantes que foram forjados nesse sentido na OCDE são os dos anos 1990. Os capitalistas perceberam que havia biliões de dólares/euros estacionados que não tinham rentabilidade comercial e começaram um processo de mercantilização da educação que não parou. Começou no ensino básico e secundário. Ficou muito claro que era preciso transformar a escola iluminista [comprometida com a socialização do] conhecimento numa espécie de ensino básico para capacitar os alunos para o mercado de trabalho. Então para quê títulos? E para isso também [foi necessário] modificar a universidade, tornar os cursos cada vez mais curtos.
As pessoas sairiam com um grau de cultura média, formadas para trabalhar em qualquer coisa, para serem flexíveis e para estarem dispostas, como dizem, a “aprender ao longo da vida”. Tudo isso significa que não tens nenhum título – qualificação, profissão – a defender no mercado, porque simplesmente não és nada. Cada um tem de adaptar-se ao que é pedido a todo o momento, de acordo com os caprichos do mercado de trabalho, certo? E então foram as organizações internacionais, como a OCDE, o Banco Mundial, o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio)4, que começaram a trabalhar a conceção de uma escola que tivesse de ensinar já não conhecimentos, mas competências, capacidades.
Foi o Processo de Bolonha. A que se chamou convergência europeia – a propaganda era que se estava a colocar a universidade ao serviço da sociedade. Mas sempre que se coloca ao serviço desta sociedade, a escola coloca-se efetivamente ao serviço desta sociedade, ou seja, [ao serviço] do mundo dos negócios.
O objetivo de colocar a universidade ao serviço da sociedade era colocá-la ao serviço do mercado, ou seja, mercantilizá-la. E, para isso, toda a rede de graus e qualificações académicas teve de ser desfeita. Toda aquela rigidez feudal, diziam... Desintegraram-se departamentos e cátedras em unidades de investigação, cujos membros têm de ir ao mercado vender a sua força de trabalho a cada quatro ou cinco anos. Além disso, não recebes dinheiro público, a menos que tenhas obtido anteriormente dinheiro privado. Se a Bayer, por exemplo, puser 10 euros no teu projeto de pesquisa, então o Estado vai dar-te 100€, porque é um projeto que tem interesse privado para uma empresa farmacêutica. O que significa que a Bayer está a receber 100€ de financiamento estatal para essa investigação, ou seja, 100€ de dinheiro de impostos e mais os investigadores que vão trabalhar para a Bayer e vão ser pagos com dinheiro dos impostos, ou seja, com o dinheiro dos outros trabalhadores.
É um golpe de mestre usar a universidade pública como caixa multibanco para que as empresas aspirem o dinheiro público e se financiem com o dinheiro dos impostos. Pois bem, isso coloca o dinheiro destinado à educação ao serviço do mundo empresarial, tanto ao nível secundário como ao nível do ensino superior. É um plano que existia desde a década de 1970, mas o que acontece é que começou a ser implementado de forma verdadeiramente séria na década de 1990.

RL: Hoje, no Brasil, 60% dos novos alunos que iniciaram um curso superior iniciam a sua formação em cursos à distância, e a maioria dos que lá estão são da classe trabalhadora. É um processo de concentração e de grande monopólio da formação da classe trabalhadora. Existem aproximadamente 2500 instituições de ensino superior no Brasil. Mas apenas 10 grupos controlados por fundos de investimento e com ações nas bolsas de valores, inclusive no NASDAQ, em Nova Iorque, têm 60% das matrículas dos estudantes do ensino superior. Há uma monopolização pelas empresas da formação da classe trabalhadora, e acredito que este é um ponto muito importante para se fazer uma reflexão sobre o significado da educação pública. O que Gramsci diz a propósito da escola unitária, que recusa a disjunção entre quem pensa e quem executa, poderá ajudar-nos a refletir sobre a universidade?
CFL: A melhor maneira de o mercado se livrar de todos aqueles, ordens profissionais ou sindicatos, que o possam controlar é dizer que já não há títulos. Isso aconteceu fundamentalmente com o Processo de Bolonha. O objetivo final era que não houvesse diplomas universitários. Falou-se de um cartão com uma banda magnética em que cada um tinha um currículo personalizado dos cursos, das licenciaturas, dos mestrados que fizeram na vida. Cada trabalhador teria de negociar com o seu currículo face a face com os empregadores, as suas condições de trabalho, ou seja, é uma forma de a luta sindical desaparecer.
RL: É possível que a esquerda defenda um projeto como este? O que está a acontecer?
CFL: A questão é que essa mercantilização da universidade foi disfarçada como uma maravilhosa revolução educativa com conotações pedagógicas de esquerda. Não haveria mais ditadura, não haveria mais a autoridade do professor. Estas coisas que ouvimos desde 1998 significam simplesmente [que os organismos internacionais pretendiam] livrar se dos professores, porque agora há supostamente métodos pedagógicos que já não precisam do professor. Ou então eles são formados nessas novas pedagogias (gamificação, projetos, etc.) que aparentemente são a última moda da esquerda. Isso vem disfarçado de antiautoritarismo, de antidisciplina.
Está tudo está virado de pernas para o ar, porque, para começar, pressupõe que a escola era uma instituição disciplinar, de vigilância e punição. Uma espécie de instituição total foucaultiana, ao mesmo nível dos quartéis, manicómios ou prisões. A escola não era isso. A escola era o oposto disso. Era uma grande conquista das classes trabalhadoras, uma bela instituição. O melhor contributo das classes trabalhadoras para a história da humanidade, o direito das crianças e dos filhos a libertarem-se dos pais e a conhecerem a objetividade científica, e saberem que o mundo ultrapassa os limites da sua família. Na famosa canção dos Pink Floyd, do álbum The Wall, onde se diz “Hey, teacher, leave them kids alone”5 a escola era apresentada como uma instituição prisional. Já começámos com o pé errado. É muito fácil para alguns senhores que se dizem pedagogos aparecerem a destruir essa instituição disciplinar, para tirar do caminho a figura do professor e da autoridade académica.
RV: A liberdade de cátedra para nós, como para um advogado ou médico, é a liberdade sobre o real do trabalho. Já foi destruída quase totalmente na escola secundária e agora fazem-no na universidade, com o Estado a determinar os conteúdos de cursos, aprendizagens essenciais, flexibilidade curricular. E a substituição da carreira, da cátedra, por professores gestores. Para isso foi estruturado todo um sistema de avaliação anónimo e sem que esteja previsto o diálogo, na forma de que “o cliente tem razão”. Isto abriu espaço à inflação das notas, fazendo da universidade uma empresa de venda de certificações (os cursos não correspondem ao saber real). A esquerda pós-moderna, que denuncia a escola como um espaço de dominação de classe, defende estes mecanismos como “defesa do aluno”, em vez de defender os cursos pré-Bolonha, a gestão democrática, as carreiras. E mais, defendem que a investigação siga o que dita a UE, a Agenda 2030 e os conteúdos a investigar, abrindo o flanco à extrema-direita para determinar o que se ensina. Não é normal que a agenda da ONU determine o que um professor da universidade faz, por mais progressista que seja.
CFL: Desde os anos 90 que o professor se tornou um inimigo, uma pessoa suspeita, preguiçosa, criminosa, corrupta e, em todo o caso, autoritária. Esta esquerda [pós-moderna] estaria lá para nos defender do professor. Assim, a espinha dorsal da escola pública está mortalmente ferida – sem liberdade académica e segurança no trabalho, sem a garantia de que os professores sejam efetivamente funcionários públicos, não há escola pública. E isso vai ao encontro da flexibilidade, que é uma palavra que a esquerda também comprou. O que queremos não é essa flexibilidade, mas o que se chama liberdade académica. Para isso, é necessária a estabilidade do serviço público, que deve ser garantida porque o professor não pode ser despedido no exercício da sua profissão. Um professor não tem de cumprir nenhum plano de governo, porque tem liberdade académica. Essa liberdade académica tem de ser defendida como algo sagrado. Daí essa ideia de transformar o professor num personagem suspeito de algum tipo de crime.
Em segundo lugar, a ideia de que se a escola vai mal é porque os professores não sabem exercer a sua profissão e, portanto, têm de ser ensinados pelos pedagogos. O que também se apresenta como uma coisa muito de esquerda – tem de se colocar o aluno no centro, dizem. Mas é claro que colocar o aluno no centro é retirar o professor do centro. E acima de tudo, eliminar a distância entre quem sabe e quem não sabe. E isso parece muito democrático, bom, mas para a escola é desastroso. Então, naturalmente, se já não houver diferença entre professor e aluno, os processos de ensino e aprendizagem desfazem-se. Nessa suposta igualdade, o melhor é que todos deem notas muito boas para ficarmos muito bem nos inquéritos e nos prestigiados rankings de escolas e universidades. Mas, claro, isso é o fim da liberdade académica. A liberdade académica deve basear-se no respeito pela figura do professor, e o que perdemos completamente é o respeito pela figura do professor. Foi um plano pré-concebido.•
¹Carlos Fernández Liria (nascido em 1959) é um filósofo espanhol e professor na Universidade Complutense de Madrid. Entrevista realizada por zoom por Raquel Varela e Roberto Leher em fevereiro de 2025. Raquel Varela é professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, historiadora e investigadora. Roberto Leher é professor de políticas públicas em educação e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
²Escrito com Javier Mestre, Escuela y Libertad – Argumentos para defender la enseñanza frente a políticas educativas y discursos pedagógicos demenciales (Ed. Akal, 2024).
³Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho.
4Antecessor da OMC.
5“Eh, professor, deixa as crianças em paz”, da canção “Another Brick in the Wall, part 2”.
Quero saber mais sobre:
Raquel Varela
historiadora, professora universitária
Roberto Leher
professor universitário