Os modernos “missionários da cultura urbana”
Caminhamos para a completa desertificação quer do solo quer da cultura local, que se transforma numa paisagem lunar, apenas destinada a meia dúzia de espécies, não autóctones, que não permitem, e expulsam, tudo o que é vida.
Justamente o contrário do que nos prometeram — que as águas de Alqueva iam tornar o Alentejo num paraíso verde. Todas as marcas de ordenamento do território que o homem construiu ao longo de milhares de anos estão desaparecendo. Para além da natureza, serão as pessoas e a cultura que desaparecem.
Jorge Cruz
O mundo rural e algumas das suas actividades características — práticas ancestrais ligadas profundamente ao território e à paisagem — estão a ser fortemente atacados pelos modernos “missionários da cultura urbana”, como foram baptizados por alguém com imenso conhecimento e sentido da realidade.
O mundo campesino em que vivemos (os que assim vivem) necessita de ser conhecido profundamente para ser compreendido. A nossa cultura, as suas práticas comunitárias, o território, a paisagem e seus respectivos ciclos e ainda as suas características geográficas, climáticas e ecológicas só se conseguem adquirir porque, ao longo de milhares de anos, se foram aprendendo e passando de pais para filhos. Só quem vive esta prática diária ou a conhece muito bem ou, ainda, quem tem suficiente abertura de espírito para a querer aprender a pode interpretar na sua grandeza.
Os referidos “missionários da cultura urbana”, ignorantes desta realidade e desconhecedores do que é um regato ou uma terra dobrada, incapazes de diferenciar um sobreiro de uma azinheira ou de distinguir uma silarca dum champignon parisiense, acreditam que o simples facto de viverem na cidade cosmopolita e doutrinada os guinda a poderem impor a sua moral, ignara da experiência centenária que os velhos agricultores, camponeses e pastores acumularam dia a dia, ano após ano, fortalecendo um conhecimento que só as rotinas de quem vive no campo domina e percebe. Por isso, quando esses artistas aparecem por aí, a quererem dar lições de moral sobre como se tratam os animais, a quererem cantar “à alentejana” como se fosse simples, a irem para os campos orvalhados com sapatos de trapo, ou a quererem impingir as suas modernidades aos locais com um certo ar de superioridade, nós, os que por cá se fizeram e aprenderam essas coisas naturalmente, com os velhos, simplesmente rimos para dentro, porque não somos de querer desconsiderar quem precisa de aprender muita coisa.
Existe agora outro tipo de “missionários”, mais espertos e mais perigosos, que nos pretendem impingir os seus “negócios” e “investimentos”. E têm-no conseguido, à força do dinheiro, enchendo o território com novas agriculturas, culturas e processos. Mas quem arca com as consequências para os terrenos agrícolas, com os cheiros, os fumos e as poluições, os venenos a escorrer para os rios e os solos a depauperarem-se somos nós. Como estes “missionários” apenas procuram o lucro fácil e a curto prazo, não estão preocupados com as consequências desta nova agricultura. E os solos vão morrendo, a biodiversidade diminuindo, a paisagem tradicional desaparecendo.
Para que os solos se mantenham produtivos, é necessário o uso de adubos orgânicos. Ora, a agricultura super-intensiva, não conservativa, não dá importância à deposição de matéria orgânica no solo. Acresce que a erosão provocada com as práticas do regadio também os vai tornando “delgados”, sem estrutura. Se os solos não receberem fertilizantes orgânicos, porque esta agricultura apenas usa, e em excesso, adubos minerais, rapidamente se perderão os nutrientes naturais, e a terra transforma-se em areia e pó.
Existem alternativas, por exemplo, a transformação dos subprodutos e desperdícios orgânicos agrícolas e o seu aproveitamento. Os restolhos, restos das podas, frutos podres, folhas e outros, devidamente tratados e compostados, podem devolver matéria orgânica à terra. Os próprios bagaços da azeitona e da uva, que costumam ser queimados, podem ser utilizados como nutrientes.
Alguns agricultores, mais conscientes, estão a começar a ficar atentos a estes problemas e iniciam-se nestas práticas. Os novos “missionários”, que só têm interesse em retirar o maior lucro e o mais rapidamente possível, nem se preocupam com o que estão a provocar. Não é para eles. É para os proprietários a quem arrendam os terrenos, ou para as empresas que, depois de terem alcançado os objectivos calculados, descartam os terrenos como se fossem detritos comuns. Neste momento, os estudos realizados indicam que os valores dos nutrientes no solo estão a cerca de 25% do necessário. Por outro lado, as culturas de regadio, ao usarem água em abundância e por vezes em excesso, uma vez que os caudais não são controlados, tendem a ir mineralizando o solo. Os processos de desertificação são por isso mais propícios em explorações de regadio.
Apesar de este cenário já ser mau, existem, infelizmente, ainda mais problemas associados a estes “investimentos grandiosos” e ao “desenvolvimento”, que todos dizem sempre que é “sustentado”. A agricultura super-intensiva que a água do Alqueva trouxe ao Alentejo tem sido responsável pela destruição de parte do riquíssimo património arqueológico, mesmo o classificado, bem como de imensos vestígios de humanidade na paisagem. Para dar espaço aos gigantes mecânicos de rega e para a abertura de uma rede de valas para passagem de condutas de água, tudo vai à frente das máquinas que não olham a nada: pontes e portos nas ribeiras; alinhamentos arbóreos; sebes de protecção dos ventos e das pragas; galerias ripícolas; modulações naturais do terreno; linhas de água; muros de pedra; tanques, poços, noras e sistemas de irrigação das hortas e quinchosos; caminhos rurais de pé posto; estradas sinuosas; espécies vegetais naturais usadas em temperos, mezinhas e chás, como os calafitos, a hortelã da ribeira, os poejos e os espargos. Extinguem-se também processos agrícolas tradicionais e seculares; o sistema de troca de sementes entre agricultores e hortelões, para protecção das consanguinidades; os habitats das espécies cinegéticas, pequenos roedores, rastejantes e insectos; os locais de nidificação dos pássaros; espécies naturais e espontâneas, como os cardos, as celgas, as alabaças, os catacus, os cogumelos, ou seja, toda a biodiversidade. Enfim, caminhamos para a completa desertificação quer do solo quer da cultura local, que se transforma numa paisagem lunar, apenas destinada a meia dúzia de espécies, não autóctones, que não permitem, e expulsam, tudo o que é vida.
Isto é justamente o contrário do que nos prometeram — que as águas de Alqueva iam tornar o Alentejo num paraíso verde. Todas as marcas de ordenamento do território que o homem construiu ao longo de milhares de anos estão desaparecendo. Para além da natureza, serão as pessoas e a cultura que desaparecem.
Por mais especialistas e técnicos, planos e departamentos, delegações e demais serviços do Estado, nada é eficaz perante o poder do dinheiro e do "desenvolvimento". As poucas vozes que se levantam são apontadas pelos interessados nos silêncios como velhos do Restelo e inimigos do desenvolvimento "sustentado". Este tipo de gente sabe usar as palavras em seu benefício e enganar os cidadãos desatentos, que são a maioria.
* O autor escreve segundo a norma anterior ao Acordo Ortográfico adoptado em 2009.