Falta de água? Ou falta de uso sustentável da água?
Será a culpa da falta de água dos consumidores que não fecham as torneiras? O problema da escassez de água no Sul de Portugal e da Península Ibérica é uma adversidade penosa recente, que deriva do uso insustentável da água que a Natureza dá à região, devida à expansão descontrolada das culturas em regadio intensivo. Em zonas onde o clima é caracterizado por baixa quantidade de chuva, a atividade humana que depende da disponibilidade de água tem de ser planeada para os valores mínimos de precipitação anual e não para a média.
Maria Carolina Varela, engenheira florestal
“Quem não poupa água e lenha, não poupa nada do que tenha.” Este dizer é uma forma popular de avisar as pessoas para a necessidade de usar a água de forma sustentável. Foi provavelmente criado por alguém que tinha a noção empírica de sustentabilidade sem conhecer a palavra “sustentável”.
O problema da escassez de água no Sul de Portugal e da Península Ibérica é uma adversidade penosa recente, que deriva do uso insustentável da água que a Natureza dá à região, devida à expansão descontrolada das culturas em regadio intensivo. Em zonas onde o clima é caracterizado por baixa quantidade de chuva, a atividade humana que depende da disponibilidade de água tem de ser planeada para os valores mínimos de precipitação anual e não para a média.
O uso sustentável da água tem de começar pelo licenciamento prudente dos usos da terra. Porém, ao que assistimos é à aprovação incessante, de forma danosa para os interesses do país, de vastas áreas de regadio e outras atividades que implicam enorme consumo de água. As corporações que instalam no Sul de Portugal atividades depredadoras de água são movidas pela voracidade do lucro. De per se, nenhuma empresa vai pautar os seus investimentos pelo uso sustentável da água. Impor contenção é da responsabilidade das autoridades que tutelam o uso do solo.
As empresas privadas têm conseguido expandir as áreas de culturas regadas aos milhares de hectares. Ao invés da agricultura que se baseia em uso sustentável da água, esta agricultura intensiva gera lucros enormes, rápidos e fáceis e é feita em exploração do tipo mineira. Quando os recursos da água e do solo se esgotam, abandonam essa zona e reiniciam o ciclo noutra região ou noutro país.
Entre as culturas intensivas de regadio destacam-se a produção de frutas, flores e legumes em estufa. No Mediterrâneo, o pináculo é atingido nas imensas áreas de estufas em Almeria, de tal maneira imensas, que tomaram o epíteto de “mar de plástico”. Até à década de 1950, na zona dominava a vegetação rasteira, as pastagens e algumas pequenas parcelas para cultivo sazonal. Em Portugal, está a desenrolar-se um cenário idêntico, com as estufas em Odemira. Mas o processo está a expandir-se a outras zonas do país.
O consumo insustentável da água vai muito para além das estufas. A milenar oliveira, tão respeitada pela sua frugalidade, pela capacidade de crescer e dar azeitona em montes e serras de solos esqueléticos, pedregosos, com escassa chuva e estios abrasadores, está a ficar irreconhecível. Está travestida numa cultura agrícola intensiva, em regadio, onde as árvores majestosas e centenárias são substituídas por umas moitas grotescas amontoadas em linhas, ridiculamente atarracadas, que têm vida económica curta. Mas não é apenas a oliveira. Ao cortejo juntam-se outras espécies cultivadas em sequeiro há séculos e louvadas pela sua resistência, como a vinha e a amendoeira. O desvario atinge o sobreiro, já havendo experiências-piloto com rega gota-a-gota.
A indústria (incluindo a geração de energia) é responsável por 19% do consumo de água, as famílias, por 12%. Todo o restante é consumido pela agricultura.
Por baixo desses milhares de “árvores” transformadas em sebes a poder de máquinas consumidoras de combustível estão quilómetros de tubos de plástico com goteiras, que drenam incontáveis metros cúbicos das albufeiras que só têm a água da chuva como fonte de alimentação. Para agravar a escassez estival de água, muitas albufeiras estão em bacias hidrográficas cobertas de eucalipto, uma árvore que a evolução natural dotou com uma fisiologia e arquitetura de raízes capaz de ir buscar água a profundidades sem par nas espécies mediterrâneas autóctones.
As barragens do Alentejo e do Algarve foram construídas para complemento das culturas de sequeiro. As que nos anos recentes exibem mais problemas situam-se nos cursos dos rios Sado, Mira, Odelouca, Arade e afluentes terminais do Guadiana. Todos estes cursos de água nascem nas serras do Algarve, que estão cobertas em grandes extensões por eucaliptos, que substituíram o sobreiro, as pastagens de sequeiro e outros usos seculares dessas terras.
Este consumo insustentável de água é um tabu que ninguém aborda, sejam políticos ou técnicos do setor.
Todos os discursos políticos e técnicos, papagueados pelos meios de informação, culpam a SECA. Quando o problema toma dimensões dramáticas, surgem os remendos — medidas conjunturais a jusante, como o aumento do preço da água e o apelo à diminuição do consumo doméstico. São paliativos para afastar responsabilidades e encobrir o cerne do problema. Os media incutem nos ingénuos, de forma desonesta, a ideia de que os cidadãos urbanos podem contribuir para o alívio do problema se abrirem menos as torneiras das suas casas. Quando o nível da água das albufeiras se torna crítico, é certo que isso se torna imperativo até à próxima época de chuvas. Mas difundir que o uso familiar é parte do problema e incutir essa ideia no cidadão ingénuo é profundamente desonesto, sobretudo quando se sabe que o consumo doméstico representa pouco mais de 10% do consumo total de água.
Transferir a responsabilidade para o nível pessoal e criar a culpa no cidadão é toldar-lhe a capacidade de questionar as causas estruturais e porque é que estão a ser omitidas.
Os povos mediterrânicos, nomeadamente o Sul de Portugal, lidam com a prolongada seca estival há milénios. Já os Romanos construíram barragens no Sudoeste da Espanha, como a albufeira de Proserpina, perto de Mérida, que foi sofrendo as necessárias manutenções e ainda hoje funciona. Os sistemas de regadio que os Árabes trouxeram para a Península Ibérica são mais um dos engenhos humanos para o aproveitamento judicioso da água.
Os egípcios usavam nilómetros para medir o nível das cheias do Nilo e prever as colheitas em consonância. Os ciclos de chuva / seca sempre existiram, são erráticos e fazem parte do normal do clima de cada região, sendo já descritos na Bíblia, Genesis 41: “Então chegaram ao fim os sete anos de abundância que houve na terra do Egipto. E, como José havia predito, começaram a vir os sete anos de fome. Havia carestia e fome em todas as terras vizinhas, mas em todo o Egipto havia o que comer. E concluiu José: ‘Agora, portanto, que o faraó escolha um homem inteligente e sábio e o estabeleça sobre toda a terra do Egipto. Que o faraó aja e institua funcionários supervisores na terra para recolher um quinto da colheita do Egipto durante os próximos sete anos de fartura. Eles deverão reunir todos os víveres que puderem desses bons anos que virão e acumular reservas de trigo que, sob o controle do faraó, serão armazenados nas cidades. Essa poupança servirá de reserva especial para os sete anos de fome que se abaterão sobre o Egipto, a fim de que a terra não seja aniquilada e o povo não morra de fome!”
Viver com a média é bastante acessível, o engenho está em saber viver com os anos de escassez. Mas não há nenhuma técnica, por mais sofisticada, que permita gastar mais água do que a que as albufeiras podem armazenar com a precipitação que os céus nos oferecem.
*Uma versão mais curta deste artigo foi publicada no Expresso de 26 de maio de 2023.