Excursão à Califórnia
Com o apoio do Pedro Manda-Chuva, conseguiram que umas herdades de sequeiro passassem a ter água para regar e que outras que já regavam ilegalmente fossem abençoadas pela boa vontade do Estado, que fez de tudo para que o Zé do Paquete passasse a Zé da Amêndoa e El Pedrito Azeiteiro, homem dos azeites espanhóis, entrasse também na aventura da amêndoa alentejana com patente americana. Quem diria que, volvidos 2000 anos do nascimento de Jesus, estaríamos a assistir às práticas esclavagistas romanas, agora em versão 2.0?
Cristina Morais
A cultura da amêndoa existe há muito em Portugal, nas terras onde a amendoeira, que é uma árvore exigente, gosta de estar: por exemplo, no Algarve. Encontra por lá o solo calcário de que precisa, a água que fica armazenada nas terras vermelhas e o sol, o sol algarvio que atrai tantos turistas ao Sul do país. O clima é amigo da amendoeira, e a proximidade do mar garante a humidade suficiente para que não existam grandes amplitudes térmicas que a prejudiquem.
Outras regiões do mundo já tiveram estas características. Por exemplo, a Califórnia. Porém, a economia extrativista americana deixou os terrenos sem água, secou os aquíferos e impermeabilizou os solos. A produção de amêndoa americana caiu a pique. Foi por esta altura, quando a seca mais fustigou os amendoais americanos, que os empreendedores Zé do Paquete e Pedrito Azeiteiro se juntaram e foram de excursão com outros agronegociantes até à Califórnia aprender a fazer amêndoa doce. Cá não havia know-how, diziam eles. E como é preciso água, muita água, para regar as amendoeiras no Alentejo, a eles se juntou o Pedro Manda-Chuva, que não tinha nenhum contrato de concessão com o São Pedro lá de cima, mas tinha o poder de conseguir regar terras onde fosse preciso, no Alentejo. Era só pedir-lhe.
A visita de estudo, como todas as visitas de estudo, foi um enorme sucesso. Trouxeram a receita americana e, quando regressaram, deitaram mãos à obra.
Primeiro, tinham de arranjar terreno para as suas amendoeiras americanas. Falaram com quatro ou cinco donos de terras, entre eles o Manoel d’Évora, bem casado com uma grande proprietária e com a Fundação dos Anjinhos, que cuidava de vasto património fundiário com muito amor e carinho, pois era sua obrigação ajudar os mais desfavorecidos.
Foram bem-sucedidos. Com o apoio do Pedro Manda-Chuva, conseguiram que umas herdades de sequeiro passassem a ter água para regar e que outras que já regavam ilegalmente fossem abençoadas pela boa vontade do Estado, que fez de tudo para que o Zé do Paquete passasse a Zé da Amêndoa e El Pedrito Azeiteiro, homem dos azeites espanhóis, entrasse também na aventura da amêndoa alentejana com patente americana. O negócio da terra deu-se com vantagens para todos. O Manoel arrendou uns milhares de hectares que, sem água, valiam 100 euros cada, mas, com a água do grande lago que circula pelas canalizações, passaram a valer 1000 euros. A Fundação dos Anjinhos fez o mesmo: com o encaixe dos arrendamentos podia ajudar muitos mais pobrezinhos. Isto foi um negócio win-win para os nossos empreendedores; o dinheiro é americano, não é deles, a receita para as amêndoas também não; os donos da terra viram-se de repente com uma pipa de massa no bolso sem saber ler nem escrever, nem gastar um cêntimo, porque o dinheiro foi todo investido pelo Estado, que gasta milhões a dotar com água terrenos de privados por este Alentejo fora.
Depois veio o trabalho duro. Era preciso arranjar quem o fizesse, de preferência sem gastar muito dinheiro, porque é preciso poupar na mão-de-obra, para que o lucro cresça ainda mais. Compraram-se carrinhas e mais carrinhas 4x4, muito icónicas, brancas com faixa roxa e marca a remeter para a páscoa eterna, tal a doçura. Contrataram-se capatazes e feitores, uns com caparro anabolizado, outros na linha dos agrobetos, sapato de vela, camisa azul ou branca e depilados no peito.
Os solos, outrora terra fértil, foram destruídos com cal viva (as amendoeiras não gostam de solos ácidos). A flora existente desapareceu por completo, e aplicaram-se doses inimagináveis de herbicidas e pesticidas. Tudo vale para produzir amêndoas doces, docinhas, com casca mole e tudo. Amendoais regados com água a rodos do grande lago.
As icónicas carrinhas passaram a circular por todo o lado, num vaivém desenfreado. Ai de quem pare na berma da estrada a fotografar um pardal! É ameaçado e posto a andar, que aquilo ali não se pode fotografar. Mas porquê, se é um bocadinho do sonho americano à moda alentejana?
Não é um sonho, é um pesadelo. Para lá de toda a espécie de crimes ambientais e financeiros, está gente que não é tida como gente, que, traficada pelos Zés desta vida, vive e trabalha em condições desumanas, não entra sequer nas estatísticas, porque, para todos, para o Estado, eles não existem: são mercadoria comercializada pela calada.
Quem diria que, volvidos 2000 anos do nascimento de Jesus, estaríamos a assistir às práticas esclavagistas romanas, agora em versão 2.0? A terra é a mesma, e nós somos cúmplices disto tudo.